quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

JIMI HENDRIX: Hey Joe


Cerca das 9 da manhã de 24 de Setembro de 1966, um jovem mestiço negro-nativo americano de vinte e três anos, de nome James Marshall Hendrix, chega ao aeroporto internacional de Londres, trazendo consigo tudo o que lhe pertencia: uma guitarra Fender Stratocaster, umas poucas roupas, rolos de plástico e gel para tratar o cabelo, e a medicação para o acne – todos os seus pertences desde há alguns meses – mais quarenta dólares emprestados e recolhidos através de uma colecta feita pelos seus amigos mais próximos. Com ele viajaram Chas Chandler, o baixista dos The Animals, e Terry McVay, um dos roadie do grupo, que foi encarregue de transportar a guitarra de Jimi, já que devido às então apertadas restrições de imigração britânicas, Chandler decidira fazê-lo passar pela fronteira como um músico que vinha reclamar os seus direitos de autor... horas depois, tinha um visto de entrada pelo período de uma semana mas sem a essencial autorização para poder trabalhar.

Para trás ficava toda uma existência em busca de um reconhecimento de facto que nunca aconteceu. Ele terá contribuído com toda a sua técnica, para o sucesso de grupos tão famosos quanto os The Isley Brothers ou os Curtis Knight and The Squires, ou para estrelas como Little Richard e Sam Cooke – citando apenas algumas! – na então predominante cena rhythm’n’blues que nunca conseguiu aceitar as suas tendências mais extravagantes: Bobby Womack, que se cruzou com ele em Outubro de 1964, quando ambos fizeram parte da banda de suporte de uma digressão de Jackie Wilson e Sam Cooke, relembra-o assim: «Ele usava roupas antigas e usadas e parecia um beatnik.»(1)

Little Richard & The Crown Jewels, April 1965

É no Cafe Wha?, um clube do empresário Manny Roth e para o qual foi alertado pelo cantor de música folk Richie Havens, que a sua carreira começou a tomar um certo rumo.  Linda Keith, uma modelo mais ou menos obscura no mundo da moda internacional mas relativamente famosa em Londres, que era – ou tinha sido – namorada de Keith Richards, o guitarrista dos The Rolling Stones que então era um dos mais austeros membros da comunidade rock, mas que se “enfeitiçara” pelo ar dengoso de Jimi, virá a ser o eixo motriz dessa mudança.  A primeira vez que se encontram, ele ainda actuava com os Curtis Knight and The Squires, no mais famoso clube de Manhattan, o Cheetah.  Nessa noite, Jimi tem a sua primeira experiência com LSD – Red House será criada a partir dessa experiência(2) – e nos meses seguintes, o LSD passará a fazer parte da sua vida.  É ainda ela que irá incentivá-lo a procurar a sua independência enquanto músico, apontando-lhe o exemplo de Bob Dylan, de quem ele era um incondicional admirador, que não possuía nem uma voz, nem uma técnica especialmente dotadas mas que isso não o impedia de ser considerado como um músico talentoso.  Todos aqueles que ela pensava poderem dar uma ajudinha na carreira de Jimi, eram levados a assistir às suas actuações com a banda que entretanto ele formara, os Blue Flame, com um dos seus muitos conhecimentos criados no ambiente livre e despreocupado da Greenwich Village de então e com quem ele dividia um apartamento, o baterista Danny Casey, com um amigo deste, o baixista Randy Palmer, e com um outro conhecido, o adolescente guitarrista fugido de casa da sua mãe, Randy Wolfe – como havia dois randys, Jimi passou-os a distingir com o nome do estado de onde eram provenientes: o primeiro, Texas, e o segundo California.  Este último, que viria a adoptar esse nome até à sua morte, pouco anos depois passaria a ser o guitarrista de um conceituado grupo como o nome de Spirit.

Cafe Wha?, Greenwich Village, 1966

Bryan James Chandler era o baixista da então já muito famosa banda britânica The Animals cuja existência estava à beira de ruir, mas não tinha sido isso o que o tinha feito decidir a abandonar o grupo após o fim da digressão pelos EUA, mas antes a necessidade de uma vida mais calma junto da família sem ter de enfrentar o constante pânico que sentia nas actuações do grupo agravado pelo medo de voar e, por isso, decidira continuar na cena musical mas apenas a tomar conta dos destinos de outros músicos.  Na noite antes do concerto que o grupo tinha agendado para Nova Iorque, Chas Chandler resolveu dar um pulo até um dos clubes na moda na cidade, o Ondine, aonde ao entrar dá de caras com a sua conterrânea Linda Keith que, uma vez mais, aproveita para falar do seu “protegido” Jimmy JamesChandler aceita ir vê-lo e no dia 3 de Agosto, assim o fez.

A primeira música que Jimi tocou nessa noite foi um título que, por uma estranha coincidência, tinha captado a atenção de Chandler uns dias antes de iniciar a digressão pelos EUA com o seu grupo, na voz de um cantor estado-unidense a viver em Inglaterra, Tim Rose, e que fizera despertar o desejo de Chandler de iniciar a sua futura carreira como agente e produtor com esse tema: Hey Joe.  Claro que ele viu em Jimi a sua grande oportunidade de um início de carreira brilhante e poucos dias depois de o grupo terminar a digressão, Chandler assinava com Jimi o contracto que o levaria até à Inglaterra.

Por lá, Chandler começou de imediato a mexer-se no sentido de projectar o seu investimento: sempre que possível, punha o clandestino Jimi a actuar enquanto paralelamente tentava criar um grupo que pudesse dar-lhe a necessária barreira musical na retaguarda.  Na noite do dia em que Noel Redding tem a sua audição como baixista, 29 de Setembro, Jimi actua sorrateiramente como convinha na sua situação, com os Brian Auger Trinity no Blaise’s – o famoso rocker francês Johnny Hallyday que se encontrava na audiência, recorda: «Eu estava lá nessa noite com Otis Redding. Quando ouvi este guitarrista totalmente desconhecido, este fantástico tipo negro que até tocava muito bem guitarra com os seu dentes, pedi-lhe para fazer parte do meu próximo espectáculo.»(3)  No dia seguinte, Jimi telefonou ao seu pai a anunciar que estava em Inglaterra e que ia ter um grupo seu : «Eu vou chamar ao grupo a Jimi Hendrix Experience.»(4)  No primeiro dia de Outubro, junta-se ao super-grupo Cream num concerto no Politécnico de Londres Central.  Cinco dias depois, Mitch Mitchell que dois dias antes tinha sido despedido dos Georgie Fame’s Blue Flames, aparece para uma audição não programada para a posição de baterista junto de Chandler e Hendrix e acaba por conseguir o lugar.

A Jimi Hendrix Experience em 1966

Uma semana depois, o grupo parte para Paris, aonde se juntam a uma digressão montada por Hallyday que incluía Long Chris e os Les Blackburds, a iniciar no dia seguinte.

Jimi Hendrix Experience, Olympia, Paris, 18 de Outubro de 1966

No dia 23, pouco depois de regressarem de França, o grupo entra no estúdio De Lane Lea Music, em Londres, para gravar Hey Joe.  Chas teve de vender cinco da suas seis guitarras para financiar o projecto, e a sexta é emprestada a Redding que nunca antes tinha tocado baixo.  Nos coros, as The Breakaways, um grupo vocal britânico, constituído por Margot Quantrell, Betty Prescott e Jean Ryder.  A canção, produzida por Chandler com a ajuda do engenheiro Dave Sidde, exigiu um total de três tentativas para obter o resultado pretendido e, depois de devidamente misturada, viria a ser publicada no Reino Unido a 16 de Dezembro, tendo como lado B, Stone Free, um original de Hendrix que começou a ser gravado no segundo dia de Novembro e que se prolongou pelos dois dias seguintes.

O single Hey Joe/Stone Free (RU)

Duas semanas depois, o single entra nas Charts britânicas e se inicialmente parece votado ao fracasso, quatro semanas depois, sobe até à sexta posição, aonde se aguenta por uma semana.  O seu sucesso é motivo para todo o grupo se sentir relaxado e confiante, incluindo Chandler que aproveita a ocasião para manifestar um típico pedaço de humor britânico: «O teu prémio, Jimi, é duas semanas com a Kathy na África do Sul.»(5) Kathy Etchingham é, na altura, a namorada branca e britânica de Jimi e a África do Sul de então, era conhecida pelas suas leis anti-miscigenação racial...

Evolução do single nas Charts britânicas (Fonte: Chart Stats)

Hey Joe ainda hoje se encontra envolta num certo mistério quanto à sua autoria: a primeira versão gravada que adquire alguma notoriedade, é a do grupo californiano The Leaves, publicada em Novembro de 1965, com o título de Hey Joe, Where You Gonna Go (sendo publicada, uma vez mais, em Maio de 1966 mas apenas como Hey Joe), que atribui a sua autoria a Dino Valenti – ele é uma dessas muitas figuras do rock dos anos sessenta,  cujo percurso inclui passagens pela cena folk de Greenwich Village no início da década de sessenta, por Los Angeles nos princípios do folk-rock e, por Frisco, no obscuro mas fundamental grupo psicadélico que foram os Quicksilver Messenger Service, para além das sempre “apimentadas” detenções por posse de drogas, a mais notória delas todas, vai ainda sendo contada assim: detido e levado a tribunal por posse de marijuana, um polícia resolveu revistá-lo no dia do seu julgamento e é apanhado de novo com marijuana e, posteriormente, numa busca à sua residência, vários tipos de anfetaminas.  Evidentemente, acabaria por levar uma “pena exemplar”.  Valenti não era o único a ser associado à autoria do tema: o seu amigo David Crosby era outro.  Membro fundador do conhecido grupo The Byrds, ele acabará por convencer os restantes membros do grupo a gravar o tema (com o subtítulo Where You Gonna Go, e que viria a ser incorporado no álbum Fifth Dimension, publicado a 18 de Julho de 1966), mesmo e apesar de toda a sua frustração pela falta de sensibilidade demonstrada pelos seus companheiros... Roger McGuinn, ex-membro dos The Byrds: «A razão porque Crosby insistia em “Hey Joe” era porque ela era a sua canção. Ele não a escrevera mas era o responsável por a ter descoberto. Ele queria fazê-la há anos mas nós nunca o deixávamos. Então, tanto os Love como os The Leaves tiveram sucessos menores com ela e David ficou tão furioso que o deixámos fazer.»(6).  Bryan MacLean que tinha sido um roadie dos The Byrds antes de fundar os Love com Arthur Lee, acabaria por ouvir Crosby a tocar o tema e a ser seduzido pelo seu entusiasmo assim, quando o grupo publica o seu primeiro longa-duração, Love, em Abril de 1966, Hey Joe é uma das suas canções.  A verdade é que aos poucos, a autoria da canção começou a ser atribuída a Billy Roberts.

Martin Cohen, advogado da Third Story, a companhia que administra os direitos relativos ao tema, explica: «Do meu conhecimento, Roberts nunca a gravou mas não foi assim que aconteceu. Eu não sei como é que ele chegou à canção mas o tipo que a mantinha em cena era o Dino Valenti. Ele disse-nos que tinha escrito a canção e, nessa altura, ele estava numa prisão na Califórnia, por causa de drogas. Eu voei até San Francisco e então fui até à prisão e perguntei-lhe à queima-roupa, se ele tinha escrito a canção. E ele disse que não a tinha escrito, mesmo apesar de ter assinado um contracto como autor com a Third Story, dizendo que a tinha escrito. Felizmente encontrámos alguém que conhecia Billy Roberts e tinha assinado a canção do Roberts. Mas este tipo não se encontrava na indústria musical, então ele cedeu os seus direitos à Third Story. Ao longo dos anos, tivemos uma relação com Billy Roberts, que nunca escreveu outra canção comercial. Quando lhe perguntei como a escrevera, ele deu-me uma obscura, quase ridícula história. Disse-me que estava com uma rapariga numa praia isolada em Maine e que escrevera pela primeira vez a letra na areia e que mais tarde só se recordava o suficiente para a escrever. Ele não conseguia lembrar-se do nome da rapariga e nunca mais a viu ou ouviu falar dela.»(7)

O registo de autoria de Hey Joe

Uma curiosidade: parece que assim do nada, uma tal Niela Miller acabaria por reclamar para si a autoria da canção... é bem possível que ela seja a rapariga de quem Billy Roberts “não conseguia lembrar-se do nome”.

Ao longo do ano de 1966, outros grupos acabarão por disponibilizar a sua versão da canção: os The Surfaris, como um lado B de um single, algures em Junho (mas que muita gente afirma ter sido, dos aqui mencionados, o primeiro grupo a gravar o tema); os The Standells, que adoptam o título de Hey Joe, Where You Gonna Go, também em Junho; e em Outubro, os The Shadows of Knight incorporam-na no seu segundo longa-duração, Back Door Men. Mas sobre esta profusão de versões, vêm-me à memória as palavras do famoso crítico de música rock, Lester Bangs: «Tal como há esta canção chamada “Hey Joe” que literalmente toda a gente e mais o caralho do seu irmão, não só a gravaram mas reclamam tê-la escrito mesmo que seja obviamente a mutação psicadélica de alguma encanecida canção folk, sobre assassinar alguém por amor, tal como nove décimos das restantes encanecidas baladas folk.»(8)

Essencialmente, a canção é apresentada em dois “ambientes” quase opostos: um mais rápido e violento, estilo rock de garagem (a dos Love, The Leaves, The Shadows of Knight, The Standells, e The Surfaris) cuja origem, miticamente, vai dar a Valenti, tendo Tim Rose, que defende que ela é um tema tradicional adaptado por ele, sido a base da corrente oposta...

E quase unânime é que a Hey Joe, de Hendrix, tem a sua origem na versão de Rose – basta ouvir as versões dos The Leaves ou dos Love (ao longo dos anos têm circulado histórias que sugerem ter sido o guitarrista destes últimos, Johnny Echols, quem terá vendido a partitura e a letra da canção aos The Leaves, tendo o cuidado de alterar ligeiramente alguns versos... sabendo que o seu grupo, mais dia, menos dia, a iria gravar), mas como ia dizendo, basta ouvir aquelas duas versões para nos apercebermos de que a de Hendrix, nada tem a ver com elas.

Construída como uma canção folk mas tendo como base uma técnica primária do jazz, o chamado círculo de quintas, que serve implacavelmente para montar uma crescente tensão que se adapta ao enredo violento transmitido pelas palavras, uma história inequivocamente folk e que se inscreve na sua tradição machista de aceitar como normal, o macho ofendido recuperar a sua honra com o sangue que faz verter, e de se sublimar com mais um tiro do que o necessário (Shoot her one more time again baby!), e da conquista da impunidade, refugiando-se no México (Way down to mexico way ), o sul selvagem aonde todos os criminosos se encontram com machistas de festas sanguinárias e mulheres cheias de artimanhas.  Nas palavras de Marsh: «Mas Hendrix não só fez a sua versão da canção, ele possuiu-a. Desacelerada, o tempo faz com que a tendência da violência na canção seja a sua mais concreta qualidade.»(9)

Postal de Jimi para o pai, por altura da gravação de Hey Joe


Hey Joe
(Billy Roberts)

Hey Joe,
Where you goin' with that gun in your hand?
Hey Joe,
I said, where you goin' with that gun in your hand? Alright
I'm goin' down to shoot my old lady
You know, I caught her messin' around with another man... yeah
I'm goin' down to shoot my old lady
You know I caught her messin' around with another man
And that ain't too cool

Hey Joe
I heard you shot your woman down, you shot her down now
Hey Joe
I heard you shot your old lady down,
You shot her down to the ground... yeah

Yes I did, I shot her
You know I caught her messin' round, messin' round town
Yes I did, I shot her
You know, I caught my old lady messin' around town
And I gave her the gun,
I shot her!

Alright
Shoot her one more time again, baby

Oh dig it
Ooo, alright

Hey Joe, said now
Were you gonna run to now?
Where you gonna run to?
Hey Joe, I said
Where you gonna run to now?
Where you, where you gonna go?
Well, dig it!

I'm goin' way down south,
Way down to Mexico way
Alright!
I'm goin' way down south,
Way down where I can be free
Ain't no one gonna find me
Ain't no hangman gonna,
He ain't gonna put a rope around me
You better believe it right now!
I gotta go now

Hey, hey Joe,
You better run on down
Goodbye everybody, ow!
Hey, hey-hey
Run on down!

________________________
(1) ROBY, Steven, e SCHREIBER, Brad. “Becoming Jimi Hendrix: From Southern Crossroads to Psychedelic London. The Untold Story of a Musical Genius”. Cambridge: Da Capo Press. 2010. p.92;
(2) ROBY, Steven, e SCHREIBER, Brad. “Becoming Jimi Hendrix: From Southern Crossroads to Psychedelic London. The Untold Story of a Musical Genius”. Cambridge: Da Capo Press. 2010. p.148;
(3) “The Day The World Turned Day-glo”. Research by Caesar Glebeek, Douglas Noble, Paul Trynka and Harry Shapiro. MOJO, Nr. 50, January 1998. p.68;
(4) HENDRIX, James Allen. “My Son Jimi. As Told To Jas Obrecht”. Seattle: AlJas Enterprises, L.P. 1999. p.142;
(5) CROSS, Charles R.Room Full of Mirrors: A Biography of Jimi Hendrix”. New York: Hyperion. 2006. p.174;
(6)  ROGAN, Johnny. (1996). Fifth Dimension (1996 CD liner notes);
(7) “The Day The World Turned Day-glo”. Research by Caesar Glebeek, Douglas Noble, Paul Trynka and Harry Shapiro. MOJO, Nr. 50, January 1998. pp.69/70;
(8) BANGS, Lester. “Psychotic Reactions and Carburetor Dung. A Tale of These Times”. 1971. Psychotic Reactions and Carburetor Dung. New York: Anchor Books. 2003. p.8;
(9) MARSH, Dave. “507. Hey Joe”. The Heart Of Rock & Soul: The 1001 Greatest Singles Every Made. New York: Da Capo Press. 1999. pp.335/336;

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