sexta-feira, 12 de junho de 2015

DINO VALENTI: Get Together


Era uma vez, há muitos muitos anos, quando a chamada Geração Beat se estabeleceu na então conhecida por tolerante cidadela de S. Francisco, em torno da City Lights Bookstore, o antro original dos seus comparsas do movimento Renaissance e que, segundo as autoridades locais (e não só!), por influência deles, acabaria por se tornar num covil dado à promiscuidade ao ter promovido a leitura, em voz alta, de parte de uma obra “obscena” do poeta Allen Ginsberg, Howl (“Vi os melhores espíritos da minha geração destruídos pela loucura, morrendo à fome histéricos nus...[1]) que, quanto muito, segundo as mentes mais liberais da altura, deveria apenas ser sussurrada, eis que o vírus que eles cultivavam nas suas dementes entranhas cerebrais, aos poucos, acabaram por se espalhar por toda a cidadela e arredores e por, inevitavelmente, contagiar as suas almas mais inocentes.  Do muito que havia em comum entre eles, como a propensão para a alienação social, a obsessão orgulhosamente desequilibrada pelo sexo ou a busca obstinada de consciências artificiais através do uso de drogas, o que aparentemente menos os unia eram as suas preferências musicais: se os Beats se entregavam ao êxtase proporcionado pela construção marginal, livre, do novo jazz (o chamado bebop), os seus pósteros recorriam ao folk enquanto «idioma da alienação»[2]... mas nada de sobrenatural quando ambos os universos se encontravam nos clubes e cafés da vizinhança, onde tão depressa se podia ouvir um Bob Dylan recriando um antigo tema tradicional de folk ou um Thelonious Monk improvisando num velho piano sobre, se calhar, o mesmo tema, é que «[Q]uando Dylan o informou de que ele tocava música folk, um pouco mais acima, Monk respondeu-lhe, “Todos nós tocamos música folk.”»[3].

«Em Nova York, quando começaram a chegar todos aqueles da Califórnia e do Colorado, como Judy Collins, os antigos puristas de folk começaram a passar mal. Quero dizer, Nova York era muito difícil e académica em música folk; Boston ainda era pior.» – Kevin Ryan[4]

Mas de toda essa malta que se juntou em Nova Iorque, da Judy Collins ao Bob Dylan, passando por Tim Hardin ou por Dino Valenti, este último é o que nos interessa para já...

Dino Valenti em plena época folk

Sobre ele, Carl Gottlieb, o co-autor da “autobiografia” de David Crosby, Long Time Gone, é peremptório ao afirmar que ele, só por si, «merece uma história própria»[5] e assim, sem grandes pretensões, vamos a ela: quando em meados da década de cinquenta, ele chegou a Greenwich Village e resolveu adoptar o nome de Dino Valenti apenas (julgo eu!) pretendia esquecer o Chet Powers que até então tinha sido... um puto rufia que crescera no ambiente semi-nómada dos feirantes onde os pequenos esquemas de marginais sem qualquer sentimento de culpa associado, faziam parte do seu dia-a-dia – Catherine, a sua irmã: «(...) a maioria dos feirantes eram desajustados de um tipo ou outro, e alguns eram criminosos escondendo-se das autoridades. Outros não se encaixavam em qualquer tipo de sociedade e alguns estavam apenas à frente do seu tempo.»[6].  Aos 17 anos, por pressão da mãe, alista-se na Força Aérea dos EUA, aonde, em pouco tempo, é dado como dispensável (sinónomos: desnecessário, não essencial, substituível) [«Na avaliação psiquiátrica de Dino pela Força Aérea lê-se “Chester Powers é capaz de fazer qualquer coisa a que ele se disponha, no entanto, ele acha que toda a Força Aérea dos Estados Unidos deve proceder de acordo com sua maneira de pensar.”»[6]] e pouco depois, está em Nova Iorque, fazendo parte do circuito folk e da vida boémia associada ao mesmo.

Em finais de 1960, ruma ao sul e pára em Los Angeles, onde se deixa ficar por mais um ano.  Daqui, parte para S. Francisco e, ao longo do ano seguinte (1962), torna-se num dos elementos mais “hip” da comunidade local de jovens rebeldes, graças a, entre outras coisas, 1) residir num ferryboat afundado numa praia de Sausalito, o Charles Van Dam, que ele transformará numa residencial livre e «Suficientemente grande para abrigar multidões de viajantes e seus carros, (...) e tornar-se no lar para (...) uma horda de diversos fugitivos, empregadas de mesa, músicos e liceais locais fascinadas pela nova música e o tipo bizarro que a fazia»[5], 2) por ser co-proprietário (com Crosby) de um local que era «um café em cima e um salão de dança para liceais em baixo»[7] aonde, segundo este, eles os dois «passavam por todas aquelas adolescentes como tubarões por um mar cheio de marinheiros»[7] e, talvez o mais importante, 3) por fazer parte de um círculo de dotados e, cada vez mais notáveis jovens músicos, como Crosby, Paul Kantner e David Freiberg, unidos por um laço tão determinante quanto era a ilicitude da sua então “outra” grande paixão – Crosby: «Tínhamos de estar num círculo para que pudéssemos fumar sem que ninguém nos visse.»[7] – sim, falo de erva!

No início de 1964, pressionado pelo ex-engenheiro de som Jim Dickson que recentemente criara a Tickson Music, uma editora vocacionada para a cena folk de S. Francisco e arredores, o «cigano esquivo»[8], como era conhecido Valenti, aceita entrar nos World Pacific Studios e gravar algumas das suas composições, entre as quais a versão original da sua mais clássica contribuição para a música popular, o tema Get Together.  Mais ou menos na mesma altura, Dickson grava também nos mesmos estúdios, uma outra versão da canção com Crosby [Dickson: «O David conhecia-me porque eu tinha gravado o Dino Valenti e dado um adiantamento de cem dólares por uma canção chamada “Get Together”. Eu e o Eddie Tickner. Era a nossa primeira canção para a nova editora que estávamos a começar porque eu estava a ter problemas com os discos de música folk. (…) O Dino precisava do dinheiro para a prestação do carro. Ele estava prestes a perdê-lo nesse dia, então demos-lhe 100 dólares pela sua canção e foi assim que começámos a editora.»[9]] mas ambas versões, acabarão por se manter inéditas pelas décadas seguintes.

A primeira versão publicada da canção, com o título de Let’s Get Together, é a do grupo de folk The Kingston Trio, no seu álbum registado ao vivo no hungry i de S. Francisco, Back in Town (Capitol Records, Junho de 1964), mas ela passará completamente incógnita por entre os outros temas mais conhecidos do grupo.  Um ano depois, os We Five, um outro grupo de música folk que, tal como os The Kingston Trio, estavam sob a tutela do manager Frank Werber, publica a sua versão em single (A&M Records, Novembro de 1965) que, em pouco tempo, consegue subir até ao #31 da tabela nacional da Bilboard Hot 100.

Claro, com o aproximar de 1966, a letra começava a fazer mais sentido para toda aquela multidão de almas gentilizadas da chamada geração freak, muito mais do que na altura em que ela fora escrita (meia década antes!), muito provavelmente (uma vez mais, deduzo eu!) acerca dos feirantes e das suas desavenças e brigas, e da necessidade de união entre eles... a não ser que ele fosse um profeta!

Cerca de dois anos depois, em finais de Agosto de 1967, a canção, retomando de novo o seu título original, Get Together, volta às tabelas da Bilboard numa versão folk-rock, através dos The Youngbloods... muito lentamente, na primeira semana de Outubro desse ano, chega ao #62 mas eis que, oitenta e nove semanas depois, ela reaparece na Bilboard Hot 100 e, no último dia de Agosto de 1969, atinge o #5, onde se queda por mais uma semana – não posso, por isso, deixar de imaginar os sentimentos de um Dino ao ver a “sua” canção interpretada por outros, a tornar-se em «uma das mais gravadas e populares de todas as composições de música pop contemporânea nos anos recentes»[10] mas ele, em 1966, tinha vendido em definitivo, todos os seus direitos sobre a canção à SFO de Frank Werber, para poder pagar os custos com um processo judiciário que terminaria, como ele descreveu a Ben Fong-Torres, no ter sido «o primeiro gato na Califórnia a ter saído sob fiança da penitenciária estadual, enquanto aguardava a decisão de um recurso de habeas corpus»[8], isto, depois de ter passado nove meses (há quem fale em dois anos: um evidente exagero!) na famosa Folsom State Prison, por ter sido apanhado com marijuana, primeiro, enquanto conduzia o carro de um amigo, segundo, pouco depois, enquanto aguardava julgamento, o que levou a polícia local a fazer uma busca domiciliária ao lugar onde ele dormia e aí, à descoberta de mais marijuana e anfetaminas.  Segundo o mesmo Fong-Torres: «Assim, Valente perdeu algo como $20,000.»[8], um cálculo arriscado de se fazer pois até à altura (e estamos a falar do começo do ano de 1969!), dela teria havido até então – segundo as minhas contas – mais de uma dezena de versões publicadas das quais destaco, naturalmente, as dos Jefferson Airplane (gravada em solidariedade para com o amigo detido?) e, por honestidade, a dos The Youngbloods.  Arrependido de ter tomado essa decisão? Dino Valenti: «Muita gente diz que fui estúpido por vender todos os meus direitos sobre a canção mas por dez anos da minha vida, meu, eu posso sempre escrever uma outra canção.»[8]

Uma curiosidade relacionada com a segunda detenção de Dino: ela deu-se precisamente dois dias depois de o seu amigo John Cipollina ter saído em liberdade (sim, uma sentença por posse de marijuana) quando ele ia a caminho de casa depois de um ensaio com o “seu” novo grupo que incluía David Freiberg (também ele recentemente saído da prisão... claro, marijuana!) e um amigo deste, Jim Murray que, por sua vez, arrastou consigo o Cipollina... que recorda assim o acontecimento: «Uma noite, conversámos acerca de ensaiar e planeámos ensaiar na noite seguinte, mas nunca aconteceu. No dia seguinte, o Dino foi apanhado.»[11]  Uns bons meses depois, os três acabariam por formar os Quicksilver Messenger Service.
  

Dino Valenti em liberdade


Uma das condições impostas pela Adult Parole Authority para a aprovação da liberdade condicional (por três anos) de Dino, foi a de que ele cumprisse o contrato entretanto assinado com a Epic Records.  Desse contrato terá saído em finais de 1968, o LP Dino Valenti que, com o single Don’t Let It Down/“Birdses” (Elektra Records, Setembro de 1964) e duas faixas (Black Betty e Live Is Like That) incluídas numa obscura colectânea com o título de Early L.A. (Together Records, início de 1970), acabariam por fazer parte da sua escassa discografia a solo com ele ainda vivo.

 
Dino Valenti nos QMS

Para a sua actuação no Winterland de S. Francisco, na passagem de ano de 1969, os então sobreviventes da Quicksilver Messenger Service em vias de extinção, resolvem convidar o seu ex-parceiro Gary Duncan a regressar ao grupo e este aceita impondo como condição que Dino, com quem ele então vinha a actuar, passasse também a integrar a banda[12]: cinco anos depois, Dino Valenti está de regresso à «banda do Dino» [Freiberg: «Eu conhecia-os a todos (John Cipollina e Jim Murray) porque eles iam estar na “banda do Dino”.»[13]]

 
Os Quicksilver Messenger Service em 1969
(A partir da esq.: Valenti, Freiberg, Duncan, Greg Elmore e Cipollina)

Get Together
(Chet Powers)

Love is but the song we sing
And fear’s the way we die
You can make the mountains ring
Or make the angels cry
Know the Lord is on the wind
And you need not know why

Oh people now, get together
Well, smile on your brother
Try to love one another right now

Some will come and some will go
But we will surely pass
When that which one has left us here
Returns for us at last
People we are but a moment’s sunlife
Fading on the grass...

I say, come on now, get together
Smile on your brother
Try to love one another right now

Well, if you hear the song and sing
And you must understand
You hold the key to love and fear
All in your trembling hand
One key unlocks them both, you know
It’s in your command

All people, now get together
Well, smile on your brother
Try to love one another right now

_______________________
[1]    GINSBERG, Allen. “Uivo”. Uivo e Outros Poemas. Selecção e tradução por José Palla e Carmo. Publicações Dom Quixote: Lisboa. 1973. 2.ª edição, 1979. p.11;
[2]    LYTLE, Mark Hamilton. “1964: Welcome to the 1960s. The Sixties, 1964-68”. America’s Uncivil Wars: The Sixties Era from Elvis to the Fall of Richard Nixon. Oxford University Press: New York. 2006. p.147;
[3]    WILENTZ, Sean. “Penetrating Aether: The Beat Generation and Allen Ginsberg’s America. Part I: Before”. Bob Dylan In America. Doubleday: New York. 2010. p.67;
[4]    CROSBY, David, e GOTTLIEB, Carl. “Three”. Long Time Gone. Reissue Edition. David Crosby & Carl Gottlieb. 2007. p.54;
[5]    CROSBY, David, e GOTTLIEB, Carl. Op. cit. p.67;
[6]    POWERS, Catherine. “The Beginning – told from my eyes.” Dino Valenti: Smile On Your brother. Disponível em <http://www.dinovalenti.com/gettogether.htm>  Acesso em: 7.Maio.2015;
[7]    ZIMMER, Dave, e DILTZ, Henry. Crosby: Traveling Folk Days. The Early Years”. Crosby, Stills & Nash: The Biography. Da Capo Press: Philadelphia. 1984, 2008. p.17;
[8]    FONG-TORRES, Ben. “Dino Valente”. Rolling Stone, No. 26. February 1, 1969. p.23;
[9]    CROSBY, David, e GOTTLIEB, Carl. “Four”. Op. cit. p.77;
[10]  GLEASON, Ralph J.Liner Notes”. LP Dino Valenti: Dino Valenti. Epic Records/ CBS, Inc., USA. 1968;
[11]  MILLS, Jon ‘Mojo’. “Liner Notes”. 2 CDs Quicksilver Messenger Service: Live at The Kabuki Theater, San Francisco, 31st December 1970. Snapper, UK. 2007. Disponível em <www.mjckeh.demon.co.uk/jc/q-det1.htm#kt>  Acesso em: 12.Maio.2015;
[12]  TAMARKIN, Jeff. “Liner Notes”. 2CDs Quicksilver Messenger Service: Sons Of Mercury, 1968-1975. Rhino Records, USA. 1991. Booklet 2, p.5
[13]  BARTHEL, John. “David Freiberg Interview”. September 4, 1997. http://www.penncen.com/quicksilver/. Disponível em <http://www.penncen.com/quicksilver/freiberg/interview.html>  Acesso em: 14.Maio.2015;

sábado, 11 de abril de 2015

CREAM: White Room



«O Ginger Baker pegou no telefone e
ligou-me para o Melody Maker.  Ele
tinha notícias excitantes para a im-
prensa musical britânica. “Eu deixei
os Graham Bond e estou a formar um
grupo, com o Eric Clapton.  E o Jack
está nele também!”»
Chris Welch[1]

Chris Welch era na altura, meados de 1966, um dos jornalistas mais disponíveis para as novas correntes musicais que iam surgindo no circuito dos pequenos clubes urbanos britânicos, cobrindo-as para o (ainda) conservador Melody Maker e é a ele que Ginger Baker recorre para, de facto, forçar a criação do grupo.  Então, a 11 de Junho, sob o título de «Eric, Jake & Ginger Juntam-se», o MM assinalava num texto de Welch que «UM SENSACIONAL novo “Grupo dos Grupos” com Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker está a ser formado.»

Claro, o “língua de trapo” do Baker ao contactar o MM, acabaria por criar uma série de problemas aos dois outros membros do grupo – Eric Clapton: «Nos meses seguintes, continuamos a ensaiar em segredo, onde e sempre que podíamos, e tínhamos um acordo tácito de que essa era a maneira como as coisas deveriam continuar até que estivéssemos preparados para ir a público. Afinal, todos nós tínhamos contrato com outras bandas. Então o Ginger pôs o gato fora do saco dando uma entrevista ao Chris Welch do Melody Maker, soltando assim o inferno. O Jack estava furioso e quase chegou a vias de facto com o Ginger e eu tive a difícil tarefa de me explicar a John Mayall que tinha sido como um pai para mim.»[2]

A árvore genealógica dos Cream

Desde o momento zero, quando Baker resolveu desafiar Clapton a formar com ele o grupo, o ego de cada um dos seus membros acabaria por ser o seu principal problema.  Clapton, supostamente o menos conflituoso dos três, mostrava-se errático quanto ao que queria: tendo abandonado os Yardbirds em Maio de 1965, acusando-os de optarem pela via mais fácil, a comercial (Clapton: «Quando os Yardbirds decidiram gravar “For Your Love” eu sabia que, para mim, era o começo do fim pois não via como poderíamos gravar um disco como aquele e continuar como estávamos. Parecia-me que nos tínhamos vendido completamente.»[3]), acabaria por se integrar naturalmente no círculo dos blues, juntando-se a John Mayall, para rapidamente chegar à conclusão de que os Bluesbreakers eram muito limitados, reduzindo-se a fazer “cópias” dos blues originais.  Baker e Jack Bruce conheciam-se desde quase o início da década, dos Blues Incorporated de Alexis Korner e, mais tarde, voltariam a encontrar-se na Graham Bond Organization, onde a sua relação se deteriorou, tornando-se gradualmente mais violenta – Bruce: «Eu estava a tocar um solo, mas o Ginger tocava por cima dele. Então apenas olhei para ele e ele atirou-me uma baqueta, então eu atirei o meu baixo e demoli a bateria toda no meio do concerto. (…) Corríamos à volta do palco e (…) eu senti-me um total imbecil acerca daquilo tudo.»[4]  Baker: «Deu-me completamente uma névoa vermelha, a intenção era a de o matar. Uma boa parte da multidão ainda estava lá e começou a cantar “He loves you, yeh! Yeh! Yeh”.»[5]  Welch sugere que Baker via o Bruce: como «um espírito rebelde que tinha de ser esmagado» e que «o confronto dos seus temperamentos escocês e irlandês não ajudava quando havia a necessidade de solucionar argumentos sobre tempos e volume.»[6]  No fim, Bruce acabaria por ser expulso do grupo pelo próprio Baker, tendo-se então mudado para os Bluesbreakers aonde se encontraria, por um breve período, com um Clapton prestes a partir para uma digressão mundial que acabaria na Grécia, refém do dono do clube nocturno onde ele e os seus companheiros tocavam os sucessos comerciais da altura, dos The Beatles aos The Kinks passando, naturalmente, pelos The Rolling Stones.

No dia 13 de Maio de 1966, uma sexta-feira, os Bluesbreakers de Mayall actuavam no Oxford Town Hall e Baker, acompanhado pela esposa, dirigiu-se até lá com a intenção de falar com Clapton que, por essa altura, já era objecto em Londres de graffitis considerando-o um deus: «Depois do concerto eu disse ao Eric, “Estou a formar uma banda, estás interessado?” E ele, de imediato, disse “Sim”.»[7]  Bom, segundo Eric, apesar de saber que entre o Baker e o Bruce «não restava muito amor», o tal sim “de imediato” teria ficado condicionado a um sim do Bruce para o lugar de baixista do grupo[8] e Baker acabaria por ceder, entrando ele próprio em contacto com o outro.
 

Os Cream em 1966

Por sugestão de Eric, o grupo adoptaria o nome de The Cream e, de acordo com um exercício descritivo do seu manager, Robert Stigwood, num comunicado distribuído em finais de Junho, «O primeiro é o último e o último é o primeiro, mas o primeiro, o segundo e o último são os Cream.» anunciando ainda nesse mesmo comunicado que o grupo iria gravar para a sua etiqueta, a Reaction Records, logo na semana a seguir[9] – não foi em Junho, nem em Julho, mas sim em Agosto, que o grupo gravou o seu primeiro single, Wrapping Paper, que acabaria por vir a ser publicado a 7 de Outubro, tendo atingido no mês seguinte um modesto #34 nas tabelas britânicas.  A crítica musical britânica mostrou-se, naturalmente, desapontada preferindo recomendar aos seus leitores o lado B, Cat’s Squirrel.  Comentário de Ginger Baker: «Esse foi o primeiro fiasco de Bruce-Brown!»[10]

Pete Brown, poeta e músico – um beatnik! – desde há muito ligado a sessões de leitura de poesia acompanhada por jazz e blues, acabaria por aparecer ligado ao grupo através de um convite feito por Baker Brown: «Na altura, o Ginger conhecia-me muito melhor do que o Jack. (…) um dia recebi um telefonema pedindo-me para ir até a um estúdio de gravação em Chalk Farm. Eles tinham escrito uma canção para os Cream e precisavam de uma letra.»[11];  Baker: «O Pete envolveu-se quando lhe pedi para vir escrever algumas letras para nós e, por ‘nós’ eu queria dizer o Eric, eu e o Jack. Essa era a ideia.»[12]  A verdade é que com o desenvolvimento criativo do grupo, Bruce acabaria por se tornar no único parceiro de Brown ou vice-versa, como quiserem: «(...) Acho que tinha essa química com o Jack. E havia uma enorme falta de material. (...) Eu na altura sempre escrevia com o Jack.»[13]

Em Dezembro de 1966, o grupo publica o seu primeiro trabalho de longa duração, Fresh Cream.  Gravado em estúdios britânicos que, na altura, apenas utilizavam quatro pistas, aceitável para o sistema mono, péssimo para o sistema estéreo.  Não tendo sido um sucesso comercial, nem tão pouco para a crítica da especialidade, acabaria, no entanto, por abrir as portas ao que se lhe seguiu, Disraeli Gears;  este, já gravado com toda a qualidade possível na época (no excelente estúdio da Atlantic Records, em Nova Iorque, e contando com a presença de um produtor e engenheiro eleitos pela própria etiqueta), viria a ser disponibilizado em Novembro de 1967, chegando em poucos meses a #1 em Inglaterra e a #4 nos EUA.
 

Os Cream em Central Park, NY, 1968

O terceiro LP, um duplo com o título de Wheels of Fire, inclui temas gravados em estúdio (no disco 1) e ao vivo (no outro) e acabaria por vir a público primeiro nos EUA, em Julho de 1968 e, só um mês depois em Inglaterra, numa manobra para captar o maior sucesso comercial possível em ambos os lado do Atlântico (#1 nos EUA e #3 em Inglaterra).

A abrir o álbum, o tema White Room, uma colaboração entre Jack Bruce e Pete BrownPenso que o Jack tinha a música e eu a ideia.»[13]), a partir de um poema deste último que se estendia ao longo de oito páginas e que, segundo o poeta, tinha sido escrito «(...) quando estava a viver naquele quarto branco. Na altura estava a começar a minha vida de novo. Eu tinha algum dinheiro da composição de canções mas ainda estava a beber e a drogar-me. Foi no meu quarto pintado de branco que eu tive a terrível experiência com droga que me fez querer parar com tudo.»[14] Numa outra declaração, ele é um pouco mais explícito: «Era um quarto pequeno, próximo das traseiras da Baker Street, no centro de Londres, num apartamento de alguém. Mesmo ao lado de um quartel de bombeiros e os alarmes continuavam a tocar, precisamente quando eu estava a ter uma viagem desagradável.»[13]  «Eu estava bêbado. Mas eu comecei a conversar com essas coisas [NA: refere-se a uns pertences que ele, uns dias antes, tinha retirado da cave e às próprias mobílias do quarto.]. A minha namorada da época passou-se completamente.»[14]

A canção abre com a guitarra de Clapton num feedback propositado, acompanhada por uma viola tocada e, posteriormente, incorporada pelo produtor Felix Pappalardi numa duplicação da intervenção de Clapton e no ritmo marcado, desde o princípio, pela batida africanista de Ginger Baker atacando uns clássicos tímpanos europeus até que, mudando-se para a bateria, aos 0:22, marca a entrada para o Bruce.  Uma das desde sempre muitas queixas de Baker contra Bruce, envolve estes 23 segundos: «Mas eu fiz coisas como o ritmo em bolero a 5/4 no início de ‘White Room’. A introdução original era em 4/4 e eu coloquei lá um bolero com tímpano. Eu não estou a dizer que escrevi a música inteira – não de todo. Mas se eles me tivessem dado cinco por cento, eu teria ficado feliz.»[15] ou dez anos mais tarde: «Toda a introdução era em 4/4 e eu transformei-a num bolero em 5/4, o que imediatamente fez a música, mas nem sequer um obrigado por isso. O Jack chegou mesmo a dizer que ele escreveu a introdução em 5/4, o que é absolutamente falso.»[16]  A vocalização de Bruce embora poderosa não consegue deixar de demonstrar os seus limites, principalmente nos falsetes, enquanto o seu contributo com o baixo, quando enquadrado no universo pop, é um assumido acto de inconformismo para com o então habitual papel reservado aos baixistas: ele não se limita a repetir ad finem os mesmos acordes, a cada intervenção ele parte para uma nova solução.  Quanto a Clapton, (con)vencido pelo furacão Jimi Hendrix, adopta o wah-wah com efeitos que acabam por ser determinantes no sucesso da canção... o que seria dela sem aqueles solos?

A gravação do tema base é feita a 6 de Julho de 1967, nos IBC Studios de Londres, com o engenheiro Adrian Barber e o produtor Felix Pappalardi do outro lado do estúdio.  Dois meses depois, no dia 17, e já com algum trabalho de produção feito em Londres, mudam-se para os Atlantic Studios de Nova Iorque, onde trocam de engenheiro – Tom Dowd aparece assim, pela primeira vez, nos créditos das gravações dos Cream.  Nas sessões de Fevereiro de 1968 (entre os dias 10 e 20), Eric Clapton aparece com o wah-wah.  A 17 de Junho, a canção está pronta para passar a disco tendo entrado para a lista das faixas a serem alinhadas para o Wheels of Fire.  Posteriormente viria a ser escolhida para o lado principal do single a ser extraído do duplo álbum que viria a ser comercializado nos EUA, em princípios de Outubro.  A 3 de Novembro atinge o #6 do Billboard Hot100, aonde ficará por três semanas.
  

As etiquetas do single, nos EUA e no RU

White Room
(Bruce-Brown)
Cream

In the white room with black curtains near the station
Blackroof country, no gold pavements, tired starlings
Silver horses ran down moonbeams in your dark eyes
Dawnlight smiles on you leaving, my contentment

I'll wait in this place where the sun never shines
Wait in this place where the shadows run from themselves

You said no strings could secure you at the station
Platform ticket, restless diesels, goodbye windows
I walked into such a sad time at the station
As I walked out, felt my own need just beginning

I'll wait in the queue when the trains come back
Lie with you where the shadows run from themselves

At the party she was kindness in the hard crowd
Consolation for the old wound now forgotten
Yellow tigers crouched in jungles in her dark eyes
She's just dressing, goodbye windows, tired starlings

I'll sleep in this place with the lonely crowd;
Lie in the dark where the shadows run from themselves

«‘White Room’ é a obra-prima de estúdio dos Cream. Não é coincidência que ela seja uma música de Bruce-Brown apresentando uma forte vocalização de Bruce e uma poderosa parte de baixo que se eleva a novos níveis de inspiração de improvisação.»[17]

«A abertura fora de comum (num tempo 5/4) leva-nos a um outro hino do rock clássico que nos mostra, em//microcosmo, as subtis invenções de Jack como baixista. Ele toca uma simples passagem no final do primeiro verso, mas em vez de apenas a repetir no final de cada subsequente verso - como a maioria dos baixistas o faria - ele usa-a como um ponto de partida para as miríades variações, com a sua vocalização, sobre um tema que parece um mecanismo de ‘chamada e resposta’ dos clássicos blues. As respostas mudam à medida que o diálogo avança, com o wah-wah de Eric a ser elevado acima do topo.»[18]

Das várias versões que consegui reunir e que disponibilizo, gostaria de realçar a dos X-Ray Connection incluída no seu (suponho eu!) único álbum de 1984 e a de Jack Bruce, em Shadows In The Air, de Julho de 2001; em ambos os casos, pela evidente nova roupagem dada ao tema, embora no segundo, também pela natural curiosidade de saber como três décadas depois o seu autor embrulha com outros argumentos, uma das suas obras-primas. As restantes covers (se o termo faz algum sentido Hoje!!!) limitam-se a ser umas mais do que outras, agradáveis cópias do original.

Ginger Baker possuído por espíritos malignos. 1966


____________________
[1]   WELCH, Chris.Stepping Out”. Cream: The Legendary Sixties Supergroup. A Balafon Book: London. 2000. p. 70;
[2]   CLAPTON, Eric. Cream”. Clapton: The Autobiography. Broadway Books: New York. 2007. p. 66;
[3]   CLAPTON, Eric. The Yardbirds”. Op. cit. p. 48;
[4]   SHAPIRO, Harry. “Yak La Bruze”. Jack Bruce: Composing Himself. A Genuine Jawbone Book: London. 2010. p. 71;
[5]   BAKER, Ginger. “The Graham Bond Organisation”. Hellraiser. John Blake Publishing Ltd: London. 2010. p. 75;
[6]   WELCH, Chris.Blue Condition”. Op. cit. pp. 33/34;
[7]   BAKER, Ginger. “Cream”. Op. cit. p. 97;
[8]   CLAPTON, Eric. Cream”. Op. cit. p. 65;
[9]   SHAPIRO, Harry. “Band Of Brothers”. Op. cit. p. 87;
[10] WELCH, Chris.Stepping Out”. Op. cit. p. 85;
[11] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 92;
[12] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 90;
[13] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 93;
[14] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 96;
[15] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 94;
[16] BAKER, Ginger. “Disraeli Gears”. Op. cit. p. 108;
[17] WELCH, Chris.Strange Brew”. Op. cit. p. 56;
[18] SHAPIRO, Harry. “Those Were The Days”. Op. cit. pp. 105/106.