segunda-feira, 30 de abril de 2012

THE ALLMAN BROTHERS BAND: Midnight Rider

«Há uma mensagem que nos é enviada
pela nossa Fronteira de que o fora-da-
-lei é mais valoroso do que o xerife.
»
Norman Mailer[01]
«O fora-da-lei torna-se num herói que
resiste às forças da ordem, mas de um
modo em que afirma os valores básicos
da sociedade americana;
»
Richard Slotkin[02]

Quem é que, tendo sido adolescente nas décadas de cinquenta e/ou de sessenta, não vibrou com as aventuras de Robin dos Bosques, o fora-da-lei que roubava aos ricos para dar os pobres?  E o que de concreto sabíamos sobre ele?  Nada!  A nossa ingenuidade de adolescentes permitia-nos contudo, compreender (ao tornar nossa, a popular lenda inglesa) que quem roubava aos “ricos” só podia, como diz o ditado, “ter cem anos de perdão”.
Não é que em Portugal, nós não tivéssemos um Robin dos Bosques nosso – José do Telhado de seu nome – a quem se lhe atribui a típica afirmação “justiceira” de que «Os ricos e os políticos é que hão-de pagar para os pobres...» mas sobre ele, Camilo Castelo Branco que o conheceu na Cadeia da Relação do Porto, nas suas Memórias do Cárcere, escreveu este pedaço de lírica crítica: «Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países!»
José do Telhado e um amigo

No Brasil, existiram os canganceiros, como por exemplo Jesuíno Brilhante que, durante a grande seca de 1877-79, assaltava comboios com comida e a distribuía de seguida pelo povo ou então, o mais famoso deles todos, Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido por Lampião, que a cultura popular se encarregou de o transformar numa espécie de Robin dos Bosques, não pelos seus gestos generosos, antes pela sua atitude de rebeldia.
Nos EUA, país aonde os fora-da-lei desde sempre tiveram uma projecção diferente, dos pistoleiros do farwest aos gangsters de Chicago, há uma veia popular que os vangloria e os sublima, respeitando velhas tradições que herdaram dos tempos em que muitos dos seus antepassados, ingleses, escoceses, ou irlandeses, associavam os fora-da-lei a atitudes de rebeldia contra o status quo – um francês que visitou a Inglaterra nas primeiras décadas do século XVIII, escreveria nas suas memórias de viagem que os ingleses se gabavam tanto da bravura dos seus exércitos quanto do sucesso dos seus fora-da-lei.

Procura-se...

Um século depois, chegaria mesmo a haver uma corrente literária, considerada menor como não poderia deixar de ser, conhecida por Newgate Novels ou Old Bailey Novels, que assumiria essa atitude publicamente.

«A questão sobre os bandidos sociais é
que eles são camponeses fora-da-lei que
os senhores e o estado tinham como cri-
minosos mas que permaneciam na so-
ciedade camponesa, e eram considera-
dos pela sua gente como heróis, como
campeões, vingadores, lutadores pela
justiça, talvez até mesmo líderes da li-
bertação e, acima de tudo, homens para
serem admirados, ajudados e apoiados.
»
Eric Hobsbawm[03]

A “paixão” pelos fora-da-lei nos EUA que começou por ter a sua expressão popular inicial nas estórias e nas canções folk que preenchiam os longos serões dos enfadonhados pioneiros, rapidamente passou ao jornalismo com a cobertura rocambolesca de assaltos e duelos, em notícias sem qualquer rigor que, na maioria dos casos, eram romantizadas para conquistar mais leitores.  As Dime Novels, surgidas algures antes mas que por altura da Guerra Civil (1861–65) atingem o seu expoente máximo graças à alfabetização da juventude incorporada, têm como um dos seus temas favoritos, os episódios da mítica Fronteira do Oeste aonde os xerifes e os fora-da-lei conviviam entre si e com colonos, inocentes mas sempre valentes, e indígenas, selvagens e por isso traiçoeiros, quer fossem índios ou mexicanos.

 Algumas dime novels

Os seus sucessores, os Pulp magazines, levariam o mito intacto até ao fim do segundo grande conflito mundial, em paralelo com a televisão e o cinema – é o período de ouro dos westerns no grande ecrã: de 1945 a meados da década de 60, os principais estúdios de Hollywood produziam uma média de 75 filmes do género, por ano (um quarto de todos os filmes produzidos!) e em alguns casos, cada vez mais questionando o conformismo social e político em que se vivia.  John Ford, o grande mestre do tema, realiza uma série de filmes aonde em alguns, mete o dedo em várias feridas da época: Sergeant Rutledge, saído em Maio de 1960, aborda mesmo para os mais desatentos, a questão do racismo; com The Man Who Shot Liberty Valance, em Abril de 1962, questiona o avanço civilizacional e, no seu último western, Cheyenne Autumn, tem a ousadia de apresentar os “vermelhos” como vítimas da ganância e falta de escrúpulos da civilização.  Em Junho de 1969, Sam Peckinpah, com The Wild Bunch, explora a decadência física dos fora-da-lei e a violência desregrada do avanço da civilização no Oeste, evidenciando assim a contradição do discurso comum mas, quanto a mim, os dois grandes westerns nesta tendência, são Butch Cassidy and the Sundance Kid, de George Roy Hill, inaugurado em Outubro de 1969, e a paródia subtilmente irresistível de Arthur Penn, Little Big Man, de finais de 1970.

A música folk, esse veículo primordial para o desenvolvimento e expansão do mito dos fora-da-lei como heróis, por sua vez, continuava a contar estórias que supostamente serviam para entreter mas que, lá no fundo, serviam para transmitir mensagens de inconformismo e rebeldia.

«(Woody Guthrie) fez a mais ampla u-
tilização dos temas da fronteira e bala-
das cowboy, em especial na série de mú-
sicas que escreveu sobre os fora-da-lei
do Oeste, nas quais Belle Starr, Billy the
Kid e Jesse James aparecem como ban-
didos sociais.
»
Richard Slotkin[04]

Nos blues, que viriam a surgir a partir de finais do século XIX tendo como universo musical de origem, as típicas canções de trabalho dos escravos emancipados do Sul que migravam em busca de trabalho nos grandes centros urbanos aonde entraram em contacto com as baladas folk , as quais, não só as adoptaram como as desenvolveram em termos sonoros, retendo contudo a celebração do estilo de vida dos fora-da-lei[05] muito provavelmente, julgo eu, pela percepção dos pontos comuns entre a sua existência e a dos heróis cantados nessas canções, não só pelo aspecto de serem proscritos mas também pelo seu desejo de reclamarem uma justiça mais imediata.

«Os blues expressam a determinação dos
negros em eles próprios se defenderem, à
boa velha maneira americana do fora-da-
-lei se necessário    como no exemplo do
“preto mau” de “Railroad Bill” que vai
“matar todos os que alguma vez me ma-
goaram”.
»
Adam Gussow[06]

No início da década de 60, Bob Dylan, esse trovador que foi criado à imagem e à semelhança de Woody Guthrie, de acordo com uma história fantástica posta a circular pelo próprio (ou por quem estava ao seu serviço), na qual ele recebe a passagem de testemunho do seu herói agonizando no leito de um hospital (chega a compor-lhe uma canção, Song To Woody [Bob Dylan, Março de 1962], cujo grande mérito é ser uma cópia fiel de uma canção do próprio homenageado: 1913 Massacre), recupera nas suas baladas folk, tidas como canções de protesto, o mito do fora-da-lei como herói.

«A realização de Dylan no extraordiná-
rio percurso dos seus álbuns na década
de 1960, de Freewheelin’ (1963) até in-
clusive John Wesley Harding (1968), foi
o de pegar na personagem do vagabun-
do e do fora-da-lei da tradição radical e
do folk, personificada por Woody Gu-
thrie, e traduzi-los para um mundo e ex-
periências diferentes da América urba-
na dos anos60.
»
Andrew Gamble[07]

John Wesley Hardin

E a capa do álbum de Bob Dylan

Dylan não era o único dos músicos contemporâneos, a pretender recuperar a mitologia do fora-da-lei: o famoso cantor-compositor de rockabilly e country Johnny Cash levou a sua “paixão” um pouco mais longe, ao se mostrar um “amigo” de todos os fora-da-lei encarcerados, não só actuando gratuitamente em três das principais prisões dos EUA (em duas delas, as actuações foram registadas e deram origem a dois dos seus mais populares álbuns de sempre, At Folsom Prison, publicado em 1968 e, no ano seguinte, At San Quentin), como prestando-se a ser um porta-voz da causa da reforma do sistema prisional.

Johnny Cash e Richard Nixon, 1972

É nesta sequência que se deve entender Midnight Rider, tema incluído no segundo álbum dos Allman Brothers Band, publicado em Setembro de 1970, com o sintomático título de Idlewild South, supostamente atibuído a partir do nome pela qual era conhecida a quinta nos arredores de Macon, aonde Dickey Betts residia mas que, no meu entendimento, tem muito mais a ver com a imagem capaz de nos trazer ressonâncias da mítica origem sulista do grupo – é preciso ter presente que o sul dos EUA foi, por muito incongruente que possa parecer, o terreno fértil aonde o rock’n’roll se desenvolveu, bem como aonde muitos dos celebérrimos fora-da-lei surgiram e, se tornaram, lendários.

Os Allman Brothers Band ao vivo

A capa de Idlewild South

Tema composto por Gregg Allman poucos dias depois de o grupo ter alugado a Big House, em Macon, contou com a preciosa ajuda de Kim Payne, um dos roadies da banda, que se encontrava presente na propriedade para a proteger de possíveis gatunos mas que, segundo reza a lenda, acabaria por ter de arrombar a porta dos estúdios da Capricorn Records, que se situavam nos arredores, para que Gregg pudesse gravar o que tinha conseguido até ali. 

A Big House nos dias de hoje

Segundo Payne, Gregg tinha encalhado no segundo verso e, saturado de o ouvir repetir o mesmo, disse-lhe: «Olha, the road goes on forever. Usa isso.»[08]  Gregg anuiu entusiasmado e ambos acabariam por terminar o tema nessa mesma noite.  A produção, como quase toda no álbum, é de Tom Dowd que assumira essa tarefa dois dias depois de os ter escutado enquanto ensaiavam no Capricorn Sound Studios, quando ia a caminho de um encontro com um dos proprietários da etiqueta, Phil Walden, a quem na altura terá dito, entusiasmado, «Tirem-nos dali! (...) Ponham-nos no estúdio!»[09] – e convém dizer que ele consegue fazer um excelente trabalho ao respeitar toda a força inicial do tema, num registo perfeito que nos transmite ao mesmo tempo, a herança das estórias folk anglo-saxónicas, do desespero dos blues dos escravos devidamente transformado na sacrílega secular música soul, e da rebeldia urbana do rock’n’roll.

Os Allman Brothers Band em pleno convívio(Trucks (de pé), Oakley, Johanson, os irmãos Gregg e Duane, e Betts)

Construído a partir de uma breve introdução com guitarra acústica por Duane Allman, que se retrai discretamente após a entrada da secção rítmica (com Butch Trucks na bateria, Jai “Jaimoe” Johanson nas congas, e Berry Oakley no baixo) para, no final do primeiro verso do refrão (00:29~00:38), na sequência da primeira estrofe, Dickey Betts, fazer uma ligeira incursão com a sua guitarra, utilizando o slide num ambiente tipicamente country, e voltando-a a repetir mais tarde, a fechar a segunda estrofe (1:00~1:07).  A parte mais livre do tema (1:14~1:44) permite que os dois guitarristas elaborarem rendilhados sonoros em estilos diferentes mas que se completam.  A parte final do tema, aquela aonde a esperança é reclamada, o que de diferente de facto apresenta é a repetição até ao fim dos dois versos finais, do refrão.  Para terminar, resta falar da participação do seu principal autor, Gregg Allman, que, no tema, significa duas coisas: a barreira sonora quase imperceptível, por parte do seu órgão mas essencialmente, a vibrante vocalização – a sua voz, potente e dramática, é toda ela soul, género a que o grupo não consegue escapar devido às suas origens musicais e que, Tom Dowd, preferiu reforçar na interpretação de Gregg.

«“Midnight Rider” sobrepõe eficazmente
as guitarras acústica e eléctricas
(…)»
Ed Leimbacher[10]

«O desempenho discreto tem o sentimen-
to de toda a gente sentada num alpendre,
a tocar, numa agradável noite de Abril.
»
Scott Freeman[08]

A sua letra, embora simples, está recheada de pequenas imagens que nos abrem uma série de enredos mais amplos e complexos.

Well, I've got to run to keep from hiding
And I'm bound to keep on riding
     And I've got one more silver dollar
         But I'm not gonna let 'em catch me, no
         Not gonna let 'em catch the midnight rider

And I don't own the clothes I'm wearing
And the road goes on forever
     And I've got one more silver dollar
          But I'm not gonna let 'em catch me, no
         Not gonna let 'em catch the midnight rider

And I've gone by the point of caring
Some old bed I'll soon be sharing
     And I've got one more silver dollar
          But I'm not gonna let 'em catch me, no
          Not gonna let 'em catch the midnight rider

Sobre os Allman Brothers Band não gostaria de dizer muito pois pretendo voltar a eles logo que possível, mas mesmo assim gostaria de adiantar uma ou outra “curiosidade”: a sua origem, como não podia deixar de ser, tem origem no núcleo formado pelos irmãos Gregg e Duane que, após uma jam session de cerca de duas horas com os restantes membros do grupo, na tarde do dia 23 de Março de 1969, terminaria com o Duane na porta do local da sessão, a avisar que «(...) todos os que estão nesta sala que não quiserem tocar na minha banda vão ter de lutar para saírem por esta porta.»[11];  Duane era a “estrela” da banda, pois era, já então, um dos “conceituados” músicos dos FAME Studios, do mítico Muscle Shoals, Alabama, tendo participado em várias gravações de nomes importantes, desde Aretha Franklin a King Curtis, passando por Wilson Pickett de quem recebe o epíteto de “skyman” (e mais tarde, o de “skydog”, embora já fosse conhecido pela alcunha de “dog” quando apareceu nos FAME Studios), numa atitude de humildade e reconhecimento do grande mestre de música soul pelo seu génio (terá sido Duane quem sugeriu que ele gravasse uma versão soul do grande sucesso de então dos The Beatles, Hey Jude, e que mesmo perante a relutância de Pickett, a trabalhou e a cedeu praticamente na versão definitiva[12].  Hey Jude, para além de dar o título ao álbum que seria publicado em 1969, transformar-se-ia num sucesso comercial ao atingir o #23 das tabelas Pop da Billboard), sem esquecer, evidentemente, o seu habitual estado artificial de estar sempre “em viagem”!

Wilson Pickett e Duane Allman, 1969

Idlewild South, chegará ao #38 nas tabelas nacionais dos EUA e embora o grupo nunca tenha dado autorização para Midnight Rider ser editado em single, o tema tornar-se-ia num dos mais populares do grupo, quer nas suas habituais longas actuações, quer nas muitas versões que viriam a surgir desde então, nas quais destaco aqui, as mais próximas: a de Joe Cocker (no álbum Joe Cocker, de Novembro de 1972), lançada num single em Agosto de 1972, atingirá o #27 das tabelas Billboard Hot 100;  Bob Seger retoma-o para faixa de abertura do seu quase anónimo álbum publicado no início de 1973, Back in '72;  nesse mesmo ano, em Outubro, o seu co-autor, Gregg Allman, no seu primeiro álbum a solo, Laid Back, regressa ao tema com uma versão mais swamp – e com ele, irá chegar ao #19 das tabelas Billboard Hot 100, no princípio de 1974;  no final do terceiro trimestre desse mesmo ano, um dos nome maiores dos “fora-da-lei” da música country, Waylon Jennings, em The Ramblin' Man, recupera-o numa extraordinária interpretação a todos os níveis.

O single com a versão ao vivo

___________________
[01] MAILER, Norman. “The Presidential Papers”. New York: Berkley Medallion Books. 1970. pp. v-iv;
[02] SLOTKIN, Richard. “Gunfighter Nation. The Myth of the Frontier in Twentieth-Century America”. New York: Maxwell MacMillan International, 1992. p.145;
[03] HOBSBAWM, Eric. “Bandits”. London: Weidenfeld & Nicolson, 2001;
[04] SLOTKIN, Richard. ________. p.281;
[05] EVANS, David. “The development of the blues”. The Cambridge Companion to Blues and Gospel Music. Edited by Allan Moore. New York: Cambridge University Press 2002, 2003. p.22;
[06] Racing Down the Blues”. An interview with Adam Gussow, author of Seems Like Murder Here: Southern Violence and the Blues Tradition. The University of Chicago. 2003; ()
[07] GAMBLE, Andrew. “The Drifter’s Escape”. The Political Art of Bob Dylan. Edited by David Boucher (Cardiff University) and Gary Browning (Oxford Brookes University). Palgrave MacMillan. First published 2004. pp.26/27;
[08] FREEMAN, Scott. “A Brotherhood of Enlightened Rogues”. Midnight Riders. The Story of The Allman Brothers Band. Boston, New York: Little, Brown and Company. 1995. pp.72/73
[09] EDWARDS, Gavin.The Allman Brothers”. Rolling Stone, Issue 826, November 25, 1999. p.60;
[10] LEIMBACHER, Ed. “Idlewild South, The Alman Brothers Band”. Rolling Stone, Issue 73, December 24, 1970. p.51;
[11] SCOPPA, Bud. “The Jam Goes On Forever”. UNCUT, Take 165, February 2011. p.40;
[12] POE, Randy. “The Road to Fame”. Skydog. The Duane Allman Story. New York: Backbeat Books. 2006, 2008. pp.83/85.

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