sábado, 11 de abril de 2015

CREAM: White Room



«O Ginger Baker pegou no telefone e
ligou-me para o Melody Maker.  Ele
tinha notícias excitantes para a im-
prensa musical britânica. “Eu deixei
os Graham Bond e estou a formar um
grupo, com o Eric Clapton.  E o Jack
está nele também!”»
Chris Welch[1]

Chris Welch era na altura, meados de 1966, um dos jornalistas mais disponíveis para as novas correntes musicais que iam surgindo no circuito dos pequenos clubes urbanos britânicos, cobrindo-as para o (ainda) conservador Melody Maker e é a ele que Ginger Baker recorre para, de facto, forçar a criação do grupo.  Então, a 11 de Junho, sob o título de «Eric, Jake & Ginger Juntam-se», o MM assinalava num texto de Welch que «UM SENSACIONAL novo “Grupo dos Grupos” com Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker está a ser formado.»

Claro, o “língua de trapo” do Baker ao contactar o MM, acabaria por criar uma série de problemas aos dois outros membros do grupo – Eric Clapton: «Nos meses seguintes, continuamos a ensaiar em segredo, onde e sempre que podíamos, e tínhamos um acordo tácito de que essa era a maneira como as coisas deveriam continuar até que estivéssemos preparados para ir a público. Afinal, todos nós tínhamos contrato com outras bandas. Então o Ginger pôs o gato fora do saco dando uma entrevista ao Chris Welch do Melody Maker, soltando assim o inferno. O Jack estava furioso e quase chegou a vias de facto com o Ginger e eu tive a difícil tarefa de me explicar a John Mayall que tinha sido como um pai para mim.»[2]

A árvore genealógica dos Cream

Desde o momento zero, quando Baker resolveu desafiar Clapton a formar com ele o grupo, o ego de cada um dos seus membros acabaria por ser o seu principal problema.  Clapton, supostamente o menos conflituoso dos três, mostrava-se errático quanto ao que queria: tendo abandonado os Yardbirds em Maio de 1965, acusando-os de optarem pela via mais fácil, a comercial (Clapton: «Quando os Yardbirds decidiram gravar “For Your Love” eu sabia que, para mim, era o começo do fim pois não via como poderíamos gravar um disco como aquele e continuar como estávamos. Parecia-me que nos tínhamos vendido completamente.»[3]), acabaria por se integrar naturalmente no círculo dos blues, juntando-se a John Mayall, para rapidamente chegar à conclusão de que os Bluesbreakers eram muito limitados, reduzindo-se a fazer “cópias” dos blues originais.  Baker e Jack Bruce conheciam-se desde quase o início da década, dos Blues Incorporated de Alexis Korner e, mais tarde, voltariam a encontrar-se na Graham Bond Organization, onde a sua relação se deteriorou, tornando-se gradualmente mais violenta – Bruce: «Eu estava a tocar um solo, mas o Ginger tocava por cima dele. Então apenas olhei para ele e ele atirou-me uma baqueta, então eu atirei o meu baixo e demoli a bateria toda no meio do concerto. (…) Corríamos à volta do palco e (…) eu senti-me um total imbecil acerca daquilo tudo.»[4]  Baker: «Deu-me completamente uma névoa vermelha, a intenção era a de o matar. Uma boa parte da multidão ainda estava lá e começou a cantar “He loves you, yeh! Yeh! Yeh”.»[5]  Welch sugere que Baker via o Bruce: como «um espírito rebelde que tinha de ser esmagado» e que «o confronto dos seus temperamentos escocês e irlandês não ajudava quando havia a necessidade de solucionar argumentos sobre tempos e volume.»[6]  No fim, Bruce acabaria por ser expulso do grupo pelo próprio Baker, tendo-se então mudado para os Bluesbreakers aonde se encontraria, por um breve período, com um Clapton prestes a partir para uma digressão mundial que acabaria na Grécia, refém do dono do clube nocturno onde ele e os seus companheiros tocavam os sucessos comerciais da altura, dos The Beatles aos The Kinks passando, naturalmente, pelos The Rolling Stones.

No dia 13 de Maio de 1966, uma sexta-feira, os Bluesbreakers de Mayall actuavam no Oxford Town Hall e Baker, acompanhado pela esposa, dirigiu-se até lá com a intenção de falar com Clapton que, por essa altura, já era objecto em Londres de graffitis considerando-o um deus: «Depois do concerto eu disse ao Eric, “Estou a formar uma banda, estás interessado?” E ele, de imediato, disse “Sim”.»[7]  Bom, segundo Eric, apesar de saber que entre o Baker e o Bruce «não restava muito amor», o tal sim “de imediato” teria ficado condicionado a um sim do Bruce para o lugar de baixista do grupo[8] e Baker acabaria por ceder, entrando ele próprio em contacto com o outro.
 

Os Cream em 1966

Por sugestão de Eric, o grupo adoptaria o nome de The Cream e, de acordo com um exercício descritivo do seu manager, Robert Stigwood, num comunicado distribuído em finais de Junho, «O primeiro é o último e o último é o primeiro, mas o primeiro, o segundo e o último são os Cream.» anunciando ainda nesse mesmo comunicado que o grupo iria gravar para a sua etiqueta, a Reaction Records, logo na semana a seguir[9] – não foi em Junho, nem em Julho, mas sim em Agosto, que o grupo gravou o seu primeiro single, Wrapping Paper, que acabaria por vir a ser publicado a 7 de Outubro, tendo atingido no mês seguinte um modesto #34 nas tabelas britânicas.  A crítica musical britânica mostrou-se, naturalmente, desapontada preferindo recomendar aos seus leitores o lado B, Cat’s Squirrel.  Comentário de Ginger Baker: «Esse foi o primeiro fiasco de Bruce-Brown!»[10]

Pete Brown, poeta e músico – um beatnik! – desde há muito ligado a sessões de leitura de poesia acompanhada por jazz e blues, acabaria por aparecer ligado ao grupo através de um convite feito por Baker Brown: «Na altura, o Ginger conhecia-me muito melhor do que o Jack. (…) um dia recebi um telefonema pedindo-me para ir até a um estúdio de gravação em Chalk Farm. Eles tinham escrito uma canção para os Cream e precisavam de uma letra.»[11];  Baker: «O Pete envolveu-se quando lhe pedi para vir escrever algumas letras para nós e, por ‘nós’ eu queria dizer o Eric, eu e o Jack. Essa era a ideia.»[12]  A verdade é que com o desenvolvimento criativo do grupo, Bruce acabaria por se tornar no único parceiro de Brown ou vice-versa, como quiserem: «(...) Acho que tinha essa química com o Jack. E havia uma enorme falta de material. (...) Eu na altura sempre escrevia com o Jack.»[13]

Em Dezembro de 1966, o grupo publica o seu primeiro trabalho de longa duração, Fresh Cream.  Gravado em estúdios britânicos que, na altura, apenas utilizavam quatro pistas, aceitável para o sistema mono, péssimo para o sistema estéreo.  Não tendo sido um sucesso comercial, nem tão pouco para a crítica da especialidade, acabaria, no entanto, por abrir as portas ao que se lhe seguiu, Disraeli Gears;  este, já gravado com toda a qualidade possível na época (no excelente estúdio da Atlantic Records, em Nova Iorque, e contando com a presença de um produtor e engenheiro eleitos pela própria etiqueta), viria a ser disponibilizado em Novembro de 1967, chegando em poucos meses a #1 em Inglaterra e a #4 nos EUA.
 

Os Cream em Central Park, NY, 1968

O terceiro LP, um duplo com o título de Wheels of Fire, inclui temas gravados em estúdio (no disco 1) e ao vivo (no outro) e acabaria por vir a público primeiro nos EUA, em Julho de 1968 e, só um mês depois em Inglaterra, numa manobra para captar o maior sucesso comercial possível em ambos os lado do Atlântico (#1 nos EUA e #3 em Inglaterra).

A abrir o álbum, o tema White Room, uma colaboração entre Jack Bruce e Pete BrownPenso que o Jack tinha a música e eu a ideia.»[13]), a partir de um poema deste último que se estendia ao longo de oito páginas e que, segundo o poeta, tinha sido escrito «(...) quando estava a viver naquele quarto branco. Na altura estava a começar a minha vida de novo. Eu tinha algum dinheiro da composição de canções mas ainda estava a beber e a drogar-me. Foi no meu quarto pintado de branco que eu tive a terrível experiência com droga que me fez querer parar com tudo.»[14] Numa outra declaração, ele é um pouco mais explícito: «Era um quarto pequeno, próximo das traseiras da Baker Street, no centro de Londres, num apartamento de alguém. Mesmo ao lado de um quartel de bombeiros e os alarmes continuavam a tocar, precisamente quando eu estava a ter uma viagem desagradável.»[13]  «Eu estava bêbado. Mas eu comecei a conversar com essas coisas [NA: refere-se a uns pertences que ele, uns dias antes, tinha retirado da cave e às próprias mobílias do quarto.]. A minha namorada da época passou-se completamente.»[14]

A canção abre com a guitarra de Clapton num feedback propositado, acompanhada por uma viola tocada e, posteriormente, incorporada pelo produtor Felix Pappalardi numa duplicação da intervenção de Clapton e no ritmo marcado, desde o princípio, pela batida africanista de Ginger Baker atacando uns clássicos tímpanos europeus até que, mudando-se para a bateria, aos 0:22, marca a entrada para o Bruce.  Uma das desde sempre muitas queixas de Baker contra Bruce, envolve estes 23 segundos: «Mas eu fiz coisas como o ritmo em bolero a 5/4 no início de ‘White Room’. A introdução original era em 4/4 e eu coloquei lá um bolero com tímpano. Eu não estou a dizer que escrevi a música inteira – não de todo. Mas se eles me tivessem dado cinco por cento, eu teria ficado feliz.»[15] ou dez anos mais tarde: «Toda a introdução era em 4/4 e eu transformei-a num bolero em 5/4, o que imediatamente fez a música, mas nem sequer um obrigado por isso. O Jack chegou mesmo a dizer que ele escreveu a introdução em 5/4, o que é absolutamente falso.»[16]  A vocalização de Bruce embora poderosa não consegue deixar de demonstrar os seus limites, principalmente nos falsetes, enquanto o seu contributo com o baixo, quando enquadrado no universo pop, é um assumido acto de inconformismo para com o então habitual papel reservado aos baixistas: ele não se limita a repetir ad finem os mesmos acordes, a cada intervenção ele parte para uma nova solução.  Quanto a Clapton, (con)vencido pelo furacão Jimi Hendrix, adopta o wah-wah com efeitos que acabam por ser determinantes no sucesso da canção... o que seria dela sem aqueles solos?

A gravação do tema base é feita a 6 de Julho de 1967, nos IBC Studios de Londres, com o engenheiro Adrian Barber e o produtor Felix Pappalardi do outro lado do estúdio.  Dois meses depois, no dia 17, e já com algum trabalho de produção feito em Londres, mudam-se para os Atlantic Studios de Nova Iorque, onde trocam de engenheiro – Tom Dowd aparece assim, pela primeira vez, nos créditos das gravações dos Cream.  Nas sessões de Fevereiro de 1968 (entre os dias 10 e 20), Eric Clapton aparece com o wah-wah.  A 17 de Junho, a canção está pronta para passar a disco tendo entrado para a lista das faixas a serem alinhadas para o Wheels of Fire.  Posteriormente viria a ser escolhida para o lado principal do single a ser extraído do duplo álbum que viria a ser comercializado nos EUA, em princípios de Outubro.  A 3 de Novembro atinge o #6 do Billboard Hot100, aonde ficará por três semanas.
  

As etiquetas do single, nos EUA e no RU

White Room
(Bruce-Brown)
Cream

In the white room with black curtains near the station
Blackroof country, no gold pavements, tired starlings
Silver horses ran down moonbeams in your dark eyes
Dawnlight smiles on you leaving, my contentment

I'll wait in this place where the sun never shines
Wait in this place where the shadows run from themselves

You said no strings could secure you at the station
Platform ticket, restless diesels, goodbye windows
I walked into such a sad time at the station
As I walked out, felt my own need just beginning

I'll wait in the queue when the trains come back
Lie with you where the shadows run from themselves

At the party she was kindness in the hard crowd
Consolation for the old wound now forgotten
Yellow tigers crouched in jungles in her dark eyes
She's just dressing, goodbye windows, tired starlings

I'll sleep in this place with the lonely crowd;
Lie in the dark where the shadows run from themselves

«‘White Room’ é a obra-prima de estúdio dos Cream. Não é coincidência que ela seja uma música de Bruce-Brown apresentando uma forte vocalização de Bruce e uma poderosa parte de baixo que se eleva a novos níveis de inspiração de improvisação.»[17]

«A abertura fora de comum (num tempo 5/4) leva-nos a um outro hino do rock clássico que nos mostra, em//microcosmo, as subtis invenções de Jack como baixista. Ele toca uma simples passagem no final do primeiro verso, mas em vez de apenas a repetir no final de cada subsequente verso - como a maioria dos baixistas o faria - ele usa-a como um ponto de partida para as miríades variações, com a sua vocalização, sobre um tema que parece um mecanismo de ‘chamada e resposta’ dos clássicos blues. As respostas mudam à medida que o diálogo avança, com o wah-wah de Eric a ser elevado acima do topo.»[18]

Das várias versões que consegui reunir e que disponibilizo, gostaria de realçar a dos X-Ray Connection incluída no seu (suponho eu!) único álbum de 1984 e a de Jack Bruce, em Shadows In The Air, de Julho de 2001; em ambos os casos, pela evidente nova roupagem dada ao tema, embora no segundo, também pela natural curiosidade de saber como três décadas depois o seu autor embrulha com outros argumentos, uma das suas obras-primas. As restantes covers (se o termo faz algum sentido Hoje!!!) limitam-se a ser umas mais do que outras, agradáveis cópias do original.

Ginger Baker possuído por espíritos malignos. 1966


____________________
[1]   WELCH, Chris.Stepping Out”. Cream: The Legendary Sixties Supergroup. A Balafon Book: London. 2000. p. 70;
[2]   CLAPTON, Eric. Cream”. Clapton: The Autobiography. Broadway Books: New York. 2007. p. 66;
[3]   CLAPTON, Eric. The Yardbirds”. Op. cit. p. 48;
[4]   SHAPIRO, Harry. “Yak La Bruze”. Jack Bruce: Composing Himself. A Genuine Jawbone Book: London. 2010. p. 71;
[5]   BAKER, Ginger. “The Graham Bond Organisation”. Hellraiser. John Blake Publishing Ltd: London. 2010. p. 75;
[6]   WELCH, Chris.Blue Condition”. Op. cit. pp. 33/34;
[7]   BAKER, Ginger. “Cream”. Op. cit. p. 97;
[8]   CLAPTON, Eric. Cream”. Op. cit. p. 65;
[9]   SHAPIRO, Harry. “Band Of Brothers”. Op. cit. p. 87;
[10] WELCH, Chris.Stepping Out”. Op. cit. p. 85;
[11] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 92;
[12] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 90;
[13] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 93;
[14] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 96;
[15] WELCH, Chris.As You Said”. Op. cit. p. 94;
[16] BAKER, Ginger. “Disraeli Gears”. Op. cit. p. 108;
[17] WELCH, Chris.Strange Brew”. Op. cit. p. 56;
[18] SHAPIRO, Harry. “Those Were The Days”. Op. cit. pp. 105/106.


Sem comentários:

Enviar um comentário