sábado, 6 de novembro de 2010

Marvin Gaye ~ O Curandeiro Sexual (Parte I)

«Como sou infeliz! Quem me livrará deste corpo que
me leva para a morte?»
                                                   – Romanos, 7:24

Quando a 21 de Maio de 1971, a Tamla – uma das subsidiárias da Motown Records – publica o último álbum de Marvin Gaye, What’s Going On, estava a precipitar uma revolução não só dentro da própria empresa mas também na música pop afro-americana em geral, então conhecida pelo rótulo de música soul.

A Motown Records tinha sido criada em Janeiro de 1959, por uma família afro-americana de Detroit encabeçada por um jovem ambicioso de nome Berry Gordy, Jr, que entrara no negócio da música escrevendo sucessos (como Reet Petite e Lonely Teardrops) para Jackie Wilson.  Da escrita à produção foi um pequeno passo, e daí aos contratos em exclusividade com intérpretes como os The Miracle, apenas mais um outro pequeno passo.  Será precisamente por este grupo que a editora terá o seu primeiro sucesso nacional, quando Shop Around atinge o #2 da tabela pop nacional (a Billboard Hot 100) em meados de Janeiro de 1961 – mais ou menos um ano depois de ter lançado o seu primeiro single (Come To Me, por Marv Johnson, através da Tamla).  Desde o princípio, Gordy estabeleceu como meta o mercado nacional (a partir dos chamados crossovers e, em menos de uma década, acabaria por conquistar o mercado internacional.
Graças a contratos que impunham desde o controlo da produção artística à da vida pessoal dos seus contratados (no seu pacote, tiveram nomes como os Temptations, Four Tops, Martha Reeves And The Vandellas, Supremes, Stevie Wonder e Jackson 5), passando por uma “linha de produção” que incluía compositores/produtores (o próprio Gordy e o seu braço-direito Smokey Robinson, o famoso trio Brian Holland-Lamont Dozier-Eddie Holland, Norman Whitfield, etc), músicos residentes (os então quase incógnitos mas agora conhecidos, The Funk Brothers), e estúdios (os Hitsville Studios, quer em Detroit, quer em Los Angeles), a Motown acabou por ser quem praticamente dominou o mercado discográfico dos EUA até surgirem em cena os The Beatles – de 1961 até finais de 1965, a Motown e as sua subsidiárias, conseguiram ter onze singles como números um nas tabelas nacionais.

«Berry Gordy fundou e presidiu ao império musical
conhecido por Motown. Como jovem negro que tra-
balhou em tempos muitas vezes inóspitos, Gordy es-
forçou-se para atravessar a barreira racial com mú-
sica que pudesse tocar todas as pessoas, independen-
temente da cor da sua pele. Sob a sua tutela, a Mo-
town tornou-se num modelo de capitalismo negro, de
orgulho e de auto-expressão, e um repositório para
alguns dos maiores talentos de sempre reunidos nu-
ma companhia.»(1)

«Ao longo dos anos não se têm interessado em na-
da mais do que no sucesso (“Money (That’s What I
Want)”, de Barret Strong, foi um indício precoce) –
e a sua fórmula para alcançar esse sucesso tornou-
-se cada vez mais clara e previsível  – mas a Motown
nunca perdeu contacto com a vida real das pessoas
que compram discos.» – Vince Aletti(2 p.40)

«O crescimento da Motown representa uma pará-
bola perfeita sobre o capitalismo negro em acção.
Para Gordy, a atenção à economia era uma tradi-
ção familiar. (...) O jovem Gordy cresceu num am-
biente aonde as virtudes principais do capitalismo
– a competitividade e uma forte apreciação do dó-
lar – eram artigos de fé. (...) A Motown trabalhou
arduamente para tranquilizar a América de que o
perigo estava em segurança, controlado, de que as
canções eram sobre romance, não sobre sexo. (...)
Num país condicionado para temer as mulheres ne-
gras como Jezebeis ameaçando a santidade do ca-
samento branco, a Motown promoveu as Supre-
mes como o “girl group” por excelência.» – Craig
Werner(3 pp.18/19)

O jovem Marving Gaye aparece na Motown após se ter feito passar por convidado numa das festas anuais de Natal da companhia, aonde aproveitou para tocar e cantar uma canção que chamaria a atenção de Gordy.  Este, ao descobrir que ele estava ligado a uma das mini-editoras do então já seu cunhado Harvey Fuqua, maquinou um plano para as incorporar na Motown.  Em Março de 1961, Fuqua acabaria por ceder aos avanços de Gordy e, com as duas etiquetas, o contrato com Gaye acabaria por passar para a posse deste.

Marvin, Anna e Gwen Gordy, Harvey Fuqua

Numa festa em casa de Berry, Gaye que tinha sido chamado para animar musicalmente o evento, acaba por conhecer a irmã mais velha do patrão, Anna, e pouco depois ambos iniciam uma relação amorosa que terá contribuído em muito, para a sua carreira na Motown.

«Ele queria ter certeza de que eu entendi os factos
básicos: como Harvey Fuqua o levou para Detroit
na infância da Motown de Berry Gordy, como Fu-
qua se casou com uma das irmãs de Gordy, Gwen,
enquanto Marvin casou com a outra, Anna, uma
mulher que, como o seu irmão, possuía astutos ins-
tintos para o negócios e ajudou consideravelmen-
te o seu muito mais novo marido a se tornar numa
estrela.» – David Ritz(4 p.21)

No início, entre as suas contribuições como vocalista, Gaye participou também como baterista em várias gravações de outros nomes (por exemplo, em Fingertips de Stevie Wonder) e compositor (Dancing In The Street, em parceria com o produtor William “Mickey” Stevenson).

«Toda a gente ajudava toda a gente.  Eu tocava ba-
teria em todas as gravações das Marvelettes, em vá-
rias das dos Miracles, em várias das minhas  – eu
cantei nos coros.» – Marvin Gaye(5 p.14)

O seu primeiro grande sucesso viria a surgir em Dezembro de 1962, quando Hitch Hike atinge o #32 na tabela nacional.  Em meados da década, Gordy atribui-lhe o papel de “homem das mulheres”: é o período dos duetos.  Primeiro, com Mary Wells, depois com Kim Weston, conforme estas vão abandonando a Motown fartas das imposições ditatoriais de Gordy, e que desemboca numa associação mais duradoura e dourada com Tammi Terrell que durará cerca de dois anos.  Deste duo sairão temas inesquecíveis como Ain’t No Mountain High Enough, Your Precious Love ou Ain’t Nothing Like The Real Thing.

Marvin e Tammi Terrell

Essa relação profissional ou algo mais, como várias vezes foi sugerido pela comunicação social (e vagamente alimentado pela própria Motown), acabaria na ausência de Tammi devido ao avançado estado da doença que a corroía.  Tentativas de lhe atribuírem novas “parceiras” acabariam por falhar e durante bastante tempo ele acabaria por se recusar a pisar de novo os palcos – o seu interesse concentrava-se agora na área da produção.  É no entanto desse período que se lhe reconhece a sua grande interpretação de sempre, com esse tema muito especial que é I Heard It Through The Grapevine.

O single
«Em “I Heard It Through the Grapevine”, a máscara
da Motown começou a desaparecer. Ostensivamente
uma canção sobre o fim de uma relação, “Grapevine”
captura a obsessão do final dos anos sessenta com os
boatos, com a paranóia. Altamente política nas suas
implicações, a canção apresenta uma sensibilidade
separatista no santuário sagrado da integração eco-
nómica negra. Como a historiadora cultural negra
Patricia Turner mostra num livro intitulado a partir
da obra-prima de Gaye, os boatos têm uma função po-
lítica específica nas comunidades negras. Os rumores
pregam um sermão separatista: O FBI matou Martin
Luther King, Jr.; a CIA despejou drogas nos guetos pa-
ra controlar a revolução; OJ Simpson foi tramado; mé-
dicos dos serviços nacionais esterilizam sistematicamen-
te mulheres negras.» – Craig Werner(3 pp.166/167)

Quando Tammi morre em Março de 1970, é um Gaye devastado que assiste à cerimónia fúnebre.

«“Eu acho que a morte da Tammi provocou algo no
meu rapaz”, disse o Marvin Gaye mais velho.  “Ele
estava com problemas, e eu quis telefonar e pergun-
tar-lhe ‘Marvin, porque é que não estás a trabalhar?’
Ele dizia que estava cansado da sua música, mas as
suas desculpas não me satisfaziam. Não me pareciam
dele. Tenho que atribuir o facto de ele não estar a tra-
balhar à morte daquela rapariga. Ela tirou algo ao
meu rapaz.”» – Tim Cahill(6 p.42)

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