sábado, 6 de novembro de 2010

Marvin Gaye ~ O Curandeiro Sexual (Parte II)

WHAT’S GOING ON

Mas a crise que Gaye estava a viver já se vinha a acumular desde há alguns anos, e se a morte prematura de Tammi o levou ao ponto de ruptura, muitos outros motivos o traziam insatisfeito.  A nível pessoal vivia uma grave crise conjugal (ele estava com 30 anos e a Anna ia já com 48 – as aventuras extra-conjugais eram conhecidas em ambos assim como as desavenças... muitas das vezes com passagem das palavras aos actos) e a nível artístico encontrava-se farto de interpretar temas “adolescentes”.  A agravar tudo isto, a situação nos EUA era a de um país à beira de uma guerra civil – o reatar da ligação ao seu irmão Freddie que tinha estado no Vietname durante três anos e regressara traumatizado, tê-lo-á feito despertar para as questões sociais.

«“O meu telefone tocava”,  disse Gaye ao biógrafo
David Ritz sobre esses dias, “e era a Motown a que
rer que eu começasse a trabalhar e eu dizia: ‘Não vi-
ram os jornais de hoje? Não leram acerca daqueles
miúdos que estavam no Estado de Kent?’ Os assassina-
tos no Estado de Kent deixaram-me doente. Eu não
conseguia dormir, não conseguia parar de chorar. A
ideia de cantar músicas de três minutos sobre a lua e
Junho não me interessava.”»(7 p.69)

«“A atitude de empresa da Motown não me deu muito
espaço para respirar”, disse Gaye a Ritz, “mas eu co-
meçava a sentir-me suficientemente forte para seguir o
meu próprio caminho. Quando o meu irmão Frankie
regressou a casa vindo do Vietname e começou a con-
tar-me histórias, o meu sangue começou a ferver. Eu
sabia que tinha qualquer coisa – uma raiva, uma ener-
gia, um ponto de vista artístico.”»(8 p.84)

Pouco tempo depois, Gaye é confrontado com uma canção que Renaldo Benson, o baixista dos The Four Tops, andava a compor em colaboração com o compositor da Motown, Al Clarence, desde que assistira à repressão policial de uma manifestação anti-intervenção dos EUA na guerra do Vietname, no People’s Park de Berkeley.

«A polícia estava a bater neles, mas eles não estavam a
incomodar ninguém. Eu vi aquilo, e comecei a pensar
o que é que estava… a acontecer. O que é que está a
acontecer aqui?» – Renaldo Benson(9 p.96)

A canção ainda não estava terminada mas parecia não interessar nem aos restantes membros do grupo de Benson, que temiam as implicações da sua conotação política, nem a outros intérpretes que ele tinha contactado.  Gaye ouviu-a e pensou nela para os The Originals, um grupo que recentemente tinha captado o seu interesse e para os quais ele produzira uns temas.  Segundo Benson, terá sido Anna a insistir com o marido para que ele a adoptasse.

«A mulher dele disse-lhe, “Marvin esta é uma músi-
ca perfeita para ti.” Hei-de amar a Anna para sempre
por ter conseguido que ele visse a verdade disso.»
Renaldo Benson(9 p.97)

A sessão de gravação efectua-se a 10 de Junho de 1970 e terá sido marcada por uma série de peripécias que contrariamente ao esperado, terão sido antes factores determinantes na riqueza e inovação da sua composição.  O espírito de Gaye na sessão, aberto a todas as sugestões do pessoal presente no estúdio, é ainda apontado como outro desses factores.

Gordy ao ouvir o produto final recusou de imediato a sua aprovação e isso queria dizer que não haveria single para ninguém.  Ele queria músicas ingénuas e inofensivas, nada de política, drogas, ou sexo, e se já tinha cedido em outros casos (Dancing in the Street, da Martha And The Vandellas, o já mencionado I Heard It Through The Grapevine pelo próprio Gaye, Cloud Nine ou Psychedelic Shack dos Temptations) era porque neles a mensagem se encontrava camuflada ou matizada – em What’s Going On não, tudo o que estava lá era claro demais: a mensagem era política e isso ultrapassava todos os limites que tinham feito da Motown o que era.  Por sua vez, Gaye radicaliza a sua posição: ou aquilo ou nada.  Aparentemente terá sido Barney Ales, o então presidente da Motown, a dar o sim para a sua publicação.

«“Lembro-me de Berry chamar-me e dizer: ‘Como é
que podes publicar aquilo? É o pior disco que já ouvi.’
Ele pôs-me sobre as brasas.”» – Barney Ales(8 p.84)

O single é posto à venda a 20 de Janeiro de 1971 e de imediato começa a subir nas tabelas.  Em Março atinge o #1 da Hot Selling Soul Singles, a tabela afro-americana, e o #2 da Billboard Hot 100.  Gordy é obrigado a render-se e a admitir uma nova orientação empresarial para o seu cunhado.

«Quando Gaye disse a Gordy que queria publicar um
álbum de protesto contra “o Vietname, a brutalidade
policial, as condições sociais, uma série de coisas”,
Gordy disse-lhe: “não sejas ridículo”. Gaye insistiu,
“Não me sinto feliz com o mundo. Ando zangado. Te-
nho de cantar sobre isso, tenho de protestar.” Conven-
cido de que What’s Going On iria ser um erro desas-
troso, Gordy finalmente aceitou. “Marvin, nós apren-
demos com tudo. É isso a vida. Eu não acho que este-
jas certo, mas se realmente desejas fazê-lo, faz. Se isso
não der certo, vais aprender alguma coisa; se der, vou
eu aprender.” Como Gordy reconheceria na sua auto-
biografia, ele aprendeu alguma coisa.» – Craig Wer-
ner(3 p.168)

A capa do álbum What's Going On

Rodeado pela “nata” artística da Motown, desde os mais refinados dos The Funk Brothers (que pela primeira vez na história da Motown, receberão o reconhecimento ao verem os seus nomes mencionados nos créditos artísticos) aos mais líricos dos compositores (incluindo a sua esposa, Anna), contando ainda com a preciosa colaboração do orquestrador David Van DePitte (que trouxe consigo a Detroit Symphony) e a dos engenheiros Ken Sands, Cal Harris e, mais tarde em Los Angeles, de Steve Smith, Gaye inicia a gravação das restantes músicas para o álbum no dia 17 de Março.  Cerca de dois meses depois, a 21 de Maio, o álbum é posto à venda e em pouco tempo atinge o #1 das tabelas de álbuns de rhythm’n’blues e o #6 da nacional, para além de ter vindo a ser considerado álbum do ano pelas revistas especializadas Rolling Stone e Billboard, e de até a National Association for the Advancement of Colored People ter resolvido atribuir-lhe vários dos seus Image Awards, mas o mais importante, do meu ponto de vista, foram as inúmeras brechas provocadas no universo Motown: Stevie Wonder, influenciado pela arquitectura sonora de What’s Going On lançaria Where I’m Coming From e exigiria o controlo real sob a sua produção artística o que, quando lhe foi concedido, permitiu a sua extraordinária evolução (Music of My Mind e Talking Book, em 1972; Innervisions, em 1973; Fulfillingness’ First Finale, em 1974, e finalmente Songs in the Key of Life, em 1976), e toda a influência que ele e Gaye exerceriam na música afro-americana (e não só!); os The Temptations regressaram com o seu mais “consciente” momento de sempre ao gravarem Papa Was a Rollin’ Stone, seguido da “rebelião” de Eddie Kendricks que se achava subestimado no grupo e pretendia – e conseguiu – uma carreira a solo, enquanto os restantes membros resolviam regressar ao passado e não alinharem nas “inovações” dos compositores de serviço; a Edwin Starr foi-lhe permitido gravar o seu único single com algum sucesso, o “radicalWar; e até as Supremes gravam Stoned Love, um hino pacifista suficientemente ingénuo para ser o adequado à sua imagem mas, ao mesmo tempo, radical demais para o seu habitual padrão.  E até o próprio Gordy resolveu que era tempo de mudança: com o “olho” em Hollywood, abandonou Detroit a favor de Los Angeles e empenhou-se, com sucesso, num filme sobre Billie Holiday, Lady Sings The Blues, que tinha como principal actriz a sua ex-amante, Diana Ross das Supremes  A Motown nunca mais seria a mesma... bom, não para todos, os Jackson 5 que na “onda” tentaram também ser “alguém” não conseguiram nada – para Gordy, que uns putos quisessem ser gente, era demais.

«A ironia final é que este álbum que a Motown não
queria por estar fora do seu tempo acabou por ser tal-
vez a expressão mais pura do original sonho demo-
gráfico de Berry Gordy:  a música que iria apelar aos
corações, almas e bolsos de todos, em toda parte.»
Ben Edmonds(10 p.9)

Marvin Gaye na época

Eu imagino o puro prazer que Gaye deverá ter sentido ao gravar essa riqueza sonora [«Faço alguma coisa e então ouço-a e digo, ‘Uau, isto vai soar bem nisto.’ (...) e, de seguida, quando faço isso, digo ‘Uau, um par de sinos, ding, ding, aqui’, e é assim que que fazes isso.» – Marvin Gaye(7 p.69)] de que é composto o álbum; sofisticação pura feita de bongos e congas soltos aqui, com um trompete lamentando-se do nada acolá, dando lugar ali à singeleza dos violinos, o que levaria Gordy a declará-lo “muito jazzy” e, de facto, ele pouco ou nada tem a ver com o chamado “motown sound” – sim, é música soul mas a um outro nível, a uma outra elevação.  Depois a voz aveludada de Gaye é pura emoção e convicção nas palavras-mensagens – não admira que o reverendo Jesse Jackson tenha dito então à revista Time que «Marvin é tão ministro como qualquer homem no púlpito.»(13 p.11) – que pintam um fresco sobre a América na passagem para a década de setenta: a guerra no Vietname e as convulsões provocadas por ela (em What’s Going On e What’s Happening Brother) as condições de vida no gueto (Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)), aonde a droga (Flyin’ High (In the Friendly Sky)) se começava a tornar num modo de vida, o mundo que vamos deixar (Save the Children e Mercy Mercy Me (The Ecology)), e claro, esses factores sempre tão importantes por lá, que são a fé religiosa (God Is Love e Wholy Holy) e a esperança na redenção (Right On).

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