quinta-feira, 23 de maio de 2013

Joe Cocker ~ A ascenção de um Englishman


 

Joe Cocker

Tenho cá para comigo que a mítica digressão que ficou conhecida como The Mad Dogs & Englishmen (e respectivos produtos colaterais… disco e filme!), só acabou(aram) por acontecer por causa da praga que um dos mais visionários críticos musicais de rock and roll, de nome Greil Marcus, rogou num artigo para a Rolling Stone sobre o segundo álbum de Joe Cocker: «Seria divertido ouvir Cocker experimentar com diferentes tipos de grupos de apoio.»(1)

Mas recuemos então um pouco nesta estória: quando em meados de 1969, Cocker fez o inevitável percurso da “british invasion”, o de mais uma rentável digressão pelos EUA, ele já trazia atrelado a si a suposta fatalidade de ser, como o descreveu John Mendelsohn, «o produto de vinte e quatro anos de Sheffield, Inglaterra, (cuja) voz é a de um negro de meia idade do Sul»(2), i.e., uma espécie de Ray Charles branco [«Que Cocker é um imitador de Charles é indiscutível – em vários lugares deste álbum ele até recebe apoio vocal de antigas Raelettes.»(2), afirmava em resumo o mesmo Mendelsohn] ou seja, para os não tão sensíveis como eu, algo que o colocava muito próximo de muitas das “aberrações” expostas pelas diferentes feiras dos EUA, como os chamados “blackface”, embora isso, me pareça, não tenha tido qualquer influência na muito variedade hippie, freak e afins que frequentava, por exemplo, o Fillmore West, como testemunhou Ben Fong-Torres numa noite de Junho de 1969 aonde a cabeça de cartaz eram os The Byrds: «E quando os Byrds terminaram o seu programa (...). Isso deixou Joe Cocker, o último no cartaz, com talvez 500 espectadores.»(3)

 
Capa da Rolling Stone de 6 de Setembro de 1969

Ah, mas isso tinha sido antes de Woodstock e para já, Joe Cocker trazia apenas como pergaminho um álbum relativamente bem recebido quer a nível da cada vez mais numerosa imprensa musical especializada, quer pelo próprio público, de ambos os lados do Atlântico: With A Little Help From My Friends, publicado em Abril de 1969 e que, apesar de ser de um estreante, conseguiria um #29 nas tabelas britânicas e um #35 nas dos EUA.

 

Capa do LP With A Little Help From My Friends

With A Little Help From My Friends está recheado de covers sensíveis e brilhantemente reapropriadas que ainda hoje é essencial ouvi-las: de Feelin’ Alright, a partir de um original dos The Traffic (LP The Traffic, Outubro de 1968) que acabará por se tornar num dos temas obrigatórios nas suas actuações ao vivo por causa do seu ritmo inebriante, ao inevitável tema-título do álbum, With A Little Help From My Friends aonde o original dos The Beatles (Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Junho de 1967), passa a ser algo apenas pálido e sensaborão, passando por Bye Bye Blackbird, um clássico que remonta à década de vinte (procurem na NET por Gene Austin!) devidamente passado pelo filtro Ray Charles e devolvido como se fosse um original – embora quase tivesse sido estragado por um exuberante (e fora de controle) guitarrista de nome Jimmy Page (sim, esse, o futuro guitarrista dos Led Zeppelin!)– e que, para mim, pode exigir ombrear com os anteriores dois títulos.  Change In Louise, composto pela dupla Joe Cocker/Chris Stainton, é um tema cheio de garra e que não envergonha os seus autores algo que Marjorine, também da mesma dupla (originalmente composta por Stainton mas à qual Cocker terá acrescentado alguns versos) não pode reclamar: é sem qualquer piedade, um dos temas menores do álbum... um pop com reminiscências às composições para os espectáculos vitorianos de marionetas e que, se calhar, até faria todo o “sentido” um par de anos antes em plena época psicadélica.  Just Like A Woman, uma das canções mais conhecidas de Bob Dylan (Blonde on Blonde, Maio de 1966), é abordada a partir de uma outra versão, a de Richie Havens (Mixed Bag, Agosto de 1967), vale pelos seus arranjos.  Do I Still Figure In Your Life, um original dos Honeybus (Single, Outubro de 1967), abre o lado dois do álbum.  Para além das brilhantes vozes (as de Cocker e as dos coros – as meninas Madeline Bell e Heather “Sunny” Wheetman) torna-se num dos temas obrigatórios do álbum também graças às emotivas contribuições dos homens dos teclados, Stainton no piano, muito clássico, e Stevie Winwood num órgão cheio de soul [comentário a propósito de Winwood, de um generoso Cocker: «Ele apenas queria era tocar.»(3)].  Sandpaper Cadillac, a terceira composição de Cocker e Stainton, é uma agradável contribuição para o álbum com o seu-não-sei-o-quê a Procol Harum e aonde Cocker volta, uma vez mais, a brilhar.  Don’t Let Me Be Misunderstood é um clássico com tantas versões que é sempre arriscado tentar mais uma mas Cocker arriscou e não se saiu mal de todo… claro que não tem a emoção da versão de Nina Simone (Broadway-Blues-Ballads, Novembro de 1964) ou a garra da dos The Animals (Single, Janeiro de 1965) mas se outra razão não houvesse para a ouvir, bastava o solo de órgão (a partir dos 2:10) de Tommy Eyre ou/e o duelo final entre ele e a guitarra de Henry McCullough (4:06).  A fechar o álbum, mais um tema de Bob Dylan, I Shall Be Released, então apenas conhecido via primeiro (e transcendente) álbum dos The Band (Music From Big Pink, Julho de 1968) – um excelente fecho para este álbum gravado inteiramente em Londres, nos estúdios Olympic e Trident, no início de 1968 e cuja produção, cuidada e demorada (inacreditavelmente, bem mais de um ano!), teve a assinatura de Denny Cordell.

 
Alguns dos músicos que participaram no álbum

Para trás ficava, algures em 1956, uma primeira actuação como vocalista na banda de skiffle do seu irmão mais velho, Victor, e tomado o gosto, a uma longa carreira que o levou a passar por vários grupos mais ou menos obscuros que actuavam em pubs na zona de Sheffield enquanto de dia tentava prosseguir como podia, uma carreira profissional de canalizador.  Em 1963, após uma audição com o produtor Mike Leander, chega a assinar um contrato com a Decca Records para quem grava um single, com uma versão de I´ll Cry Instead dos Beatles, que viria a ser publicado em Setembro de 1964 e lhe renderia 1 dólar e 97 cêntimos em royalties e claro, o fim da sua ligação à famosa etiqueta.

 

Cocker segurando um exemplar de I’ll Cry Instead

Em 1965, com Chris Stainton, forma a base para o grupo que o irá acompanhar nos três anos seguintes, a Grease Band(4), e o passo seguinte foi enviar uma demo ao então já famoso CordellEu enviei uma gravação ao produtor Denny Cordell porque tinha visto o que ele tinha feito por outras pessoas. Eu pensei que ele seria a pessoa para saber se ela era algo de boa.»(5)].  Cordell associa-o à sua New Breed Productions(6) e lança a sua carreira com dois singles, Marjorine, em Maio de 1968, e With A Little Help From My Friends, cinco meses depois e com este último chega ao #1 das tabelas britânicas ainda em Novembro desse mesmo ano (#68 nos EUA).

 
Cocker com Denny Cordell nos EUA

Durante todo este período o grupo percorre o Reino Unido quer como grupo de apoio (na digressão dos The Who em Outubro, e na de Gene Pitney em Fevereiro do ano seguinte), quer em actuações próprias (a partir de 10 de Julho passa a ser o grupo residente nas quartas-feiras, do Marquee Club de Londres).

 

Programa da passagem do ano de 1968 no Alexandra Palace, Londres

Uma bela noite, Dee Anthony, um empresário do Bronx que fizera nome na última década e meia a gerir a carreira de Tony Bennett, apareceu no Marquee Club com um maço de dois mil dólares querendo em troca, uma digressão do grupo pelos EUA.  Fazendo coincidir com a publicação do seu primeiro álbum, em Abril de 1969, Cocker e a Grease Band estreiam-se no outro lado do Atlântico aparecendo no dia 27, no arquifamoso programa de domingo de manhã da CBS, The Ed Sullivan Show, aonde tocam Feelin’ Alright com Joe devidamente rodeado por bailarinas para que a sua já então irrequieta mímica não chocasse os olhos mais sensíveis.

 
Bilhetes para o Woodstock…

Seguiram-se depois uma série de concertos cujo ponto mais alto foi a sua aparição no Woodstock Music & Art Fair a abrir o terceiro dia desse único (e hoje mítico) evento(7)Cocker tinha conquistado definitivamente os EUA.

 

Cocker e a Grease Band no Woodstock

Por esta altura, já Joe Cocker se tinha encontrado com Leon Russell para o convidar a participar no seu próximo álbum.  Russell, então um já experiente músico de estúdio, fizera parte do elenco de um dos álbuns mais elogiados nos círculos musicais nesse verão, Accept No Substitute (Maio de 1969), do casal Delaney & Bonnie, tendo contribuído com o seu piano e guitarra, mas essencialmente com os arranjos gerais, e Cocker andava entusiasmado com o seu trabalho.  Cordell, o empresário, produtor e amigo de Joe, mexeu os seus cordelinhos e acabou por conseguir trazer Leon para o seu círculo – pouco tempo depois tornam-se amigos e chegariam mesmo a juntos criar uma etiqueta, a Shelter Records.

 
Capa do álbum Joe Cocker!

Joe Cocker!, o segundo trabalho de longa duração, abre tal como tinha encerrado o anterior, com uma cover de um original de Bob Dylan, Dear Landlord (John Wesley Harding, Dezembro de 1967), e uma das primeiras coisas que me vem à cabeça ao escutá-la é a inevitável presença do dedinho malandro de Leon Russell e evidentemente, não apenas na sua produção: a queixosa balada de Dylan é transformada num irrequieto rhythm’n’blues declaradamente mais na veia de Russell do que de Ray Charles, que está a milhar de anos luz da versão original – um padrão que será, mais ou menos frequente ao longo de todo o disco, de Hitchcock Railway a Delta Lady esta, de resto, uma composição original de Russell.  That’s Your Business Now, a única composição da dupla Cocker/Stainton (talvez uma vez mais Stainton do que Cocker!), embora faça lembrar Marjorine no que toca à recuperação de sons do passado – o sacrílego ragtime! – soa muito menos medíocre (e no original, em vinil, até beneficia do silêncio criado pela obrigatória viragem do disco).  Em Something, um original dos The Beatles (ok, ok, não me batam mais: de George Harrison!), apesar da presença (lá bem no fundo) de um excelente órgão e de uns adequados coros, ambos sacros, estilo gospel, na sua vocalização não consegue o que virá a conseguir plenamente com She Came In Through The Bathroom Window, i.e., apropriar-se uma vez mais de um tema alheio e reduzir a versão original a um mero subproduto pop.  Claro, Leon Russell na guitarra! – lançado como single nos EUA no mês de Dezembro, em pouco tempo chega ao #30 da tabela nacional da Billboard, tornando-se disco de ouro.  Reza a lenda que os Beatles rendidos pela sua interpretação de With A Little Help…, terão enviado um telegrama de incentivo e, ao mesmo tempo, convidando-o a visitá-los, o que veio a acontecer na Apple Records.  McCartney terá sido o anfitrião inicial, apresentando-lhe uma das músicas do próximo álbum do grupo, Golden Slumbers do Abbey Road (Setembro, 1969).  Cocker mostrou-se interessado em a interpretar mas McCartney moita-carrasco tendo-lhe no entanto oferecido em troca She Came In Through The Bathroom Window  – conhecendo as duas só posso dizer que ainda hoje estou para perceber o porquê...  George Harrison ter-se-á mostrado mais generoso mas o único tema que Joe achou “adequado” ao seu estilo, terá sido Something.  Delta Lady (LP Leon Russel, Março de 1970) é um tema fundamental neste novo Cocker – a peculiar dicção “british” consegue, do meu ponto de vista, transmitir uma riqueza extra ao original de Russell (um pequeno pormenor à vossa atenção: um pouco do humor britânico de Cocker, ou de quem quer que tenha vindo a ideia, a partir do 1:28 e durante os dez segundos depois – Rules Britannia!).  Hello, Little Friend, também do mesmo autor, acaba por ser apenas um sedutor pedaço lamecha do seu reportório a que Cocker não conseguiu escapar – é má? Não!... apenas indiferente se quisermos passar por cima de tudo o está para lá do 1:16... a tensão típica nas “composições lamechas” de Russell (Yeah, wait a minute...)!  É só ouvi-la!  Bird On The Wire é uma verdadeira recuperação soul da quase monofónica (mas sempre sedutora) versão de Leonard Cohen (Songs From A Room, Abril de 1969) mesmo apesar de recorrer a fórmulas estafadas por outros nomes grandes da soul music [Cohen: «Eu fico sempre intrigado quando alguém grava canções minhas. (…) Mas a versão de Joe Cocker de “Bird On A Wire” é a minha favorita.»(8)].  Lawdy Miss Clawdy é uma cover tratada com o maior respeito pelo original de Lloyd Price (Single, Abril de 1952), reforçando-o com um som importado directamente do Delta, da crioula La Nouvelle-Orléans (Russell uma vez mais!), a que Cocker corresponde plenamente e que acima de tudo, no final, permite uma “passagem” extraordinária para She Came In Through The…, o grande tema do álbum!  O ébrio Hitchcock Railway que encerra o lado um vem, uma vez mais, reforçar a minha ideia do “dedinho malandro” de Russell – creio ser isso evidente, basta ouvi-lo para chegar a essa conclusão.  Um original de Dunn & McCashen (Mobius, 1968) já brilhantemente recuperado por José Feliciano (Souled, 1969) mas que não consegue ter o impacto da radical interpretação boogie de Cocker... um verdadeiro comboio em marcha!  Para fecho do seu trabalho, Cocker foi buscar uma das mais conhecidas canções de então dos The Lovin’ Spoonful, Darling Be Home Soon (Single, Fevereiro de 1967), composta por John Sebastian para um filme de Francis Ford Coppola, You’re a Big Boy Now, e que Sebastian recuperara na sua actuação no Woodstock.  A versão de Cocker não chega a poder ser considerada como uma cover pois quase nada de novo acrescenta à versão original e nesse aspecto, é apenas para esquecer embora com o tempo se tenha vindo a tornar num dos temas mais requisitados para as suas já (muitas) habituais colectâneas de sucessos...

Mal Russell aceitou o convite para se juntar ao grupo, as primeiras gravações do álbum iniciaram-se no estúdio que ele montara uns anos antes na sua casa, em Skyhill, Los Angeles.  É aí que ele apresenta a Cocker as suas canções e é aí que os dois seleccionam os restantes temas a gravar, basicamente, uma selecção apresentada por Russell Desde o ano passado comecei a gostar menos e menos. Quanto às únicas pessoas que ainda me estão batendo são Dylan e os Beatles.» – confessa Cocker a Fong-Torres da Rolling Stone(3)].  O restante trabalho de gravação viria a ser feito em Hollywood, nos estúdios da A&M e no Sunset Sound.  Publicado em Novembro de 1969, no mês seguinte chegaria a #11 nos EUA.

«O Joe é um tipo estranho; ele de todo
não tem ambições. Ele apenas gosta de
tocar rock and roll e não tem sonhos so-
bre como o poderá fazer porque ele pode
tocar rock and roll do modo que ele qui-
zer.» – Denny Cordell(3)

Com a entrada de uma nova década, Cocker e a Grease Band resolveram separar-se – Cocker assume que a separação se deveu ao seu desinteresse, «porque não estávamos a fazer nada novo»(3) mas aparentemente, os restantes membros do grupo acabariam por continuar juntos(9), apenas Chris Stainton se manteria ao lado de Cocker que, por sua vez, aproveita para tirar uns dias de férias na Jamaica regressando a Los Angeles, a 11 de Março.

No dia seguinte, é abordado por Dee Anthony que vem recordar-lhe a obrigação de cumprir as restantes datas que, segundo ele, já estavam agendadas para a partir do dia 20 [«No mesmo dia em que o Joe voou para Los Angeles, assim o fizeram também Dee Anthony e Frank Barsalona, dizendo: “Olha, filho, tens de fazer essa digressão; caso contrário, nunca mais serás autorizado de novo na América.”» – recorda Cordell(10)].  Este, posto a par da situação, telefona a Russell que, por sua vez, entra em contacto com os bateristas Jim Keltner e Chuck Blackwell que aceitaram de imediato o convite para fazerem parte de um novo grupo; alguns dos seus antigos companheiros do tempo dos Delaney & Bonnie ao escutarem rumores de que Russell estava a montar uma banda e como estavam sem colocação, etc, etc, e com eles apareceram as mulheres e os filhos, os amigos e, já agora, os amigos dos amigos, para além dos curiosos e até mesmo de um cão (para os interessados: Canina de nome).  Numa semana, o período que Russell tinha para erguer o grupo do nada, ele acaba por conseguir um supergrupo que nunca tinha tido até então qualquer paralelo na história do rock and roll.

 

O grupo

Durante os ensaios, mais precisamente no dia 17, Cocker e Russell aproveitam para gravar um single com uma cover de The Letter, um original dos The Box Tops (Single, Agosto de 1967), no lado A, e Space Captain, de Matthew Moore, no lado B.  Publicado já em plena digressão, viria a atingir o #7 nos EUA e o #39 no RU.

 
Capa do single The Letter/Space Captain

Dois dias antes do concerto inaugural, «alguém propôs que toda a digressão fosse filmada.»(11)  Um novo avião, um Super Constellation, baptizado de Cocker Power, foi então alugado a fim de acomodar as quarenta e três pessoas que agora davam corpo aos Mad Dogs & Englishmen – o nome terá sido sugerido por Cordell: por exclusão de partes, os Mad Dogs seriam os yankees já que os Englishmen só poderiam ser os dois cavalheiros britânicos, Cocker e Stainton, que andavam por lá.

 

Cocker à saída do Cocker Power

O primeiro concerto realizou-se no Eastown Theatre, de Detroit, e Dave Marsh, da revista Creem, esteve lá e conta assim: «No minuto em que eles apareceram a atmosfera no salão mudou. Quero dizer, cá estava Leon Russell parecendo absolutamente ultrajante no seu chapéu de cartola à Mick Jagger, vermelho branco e azul, e as suas calças às riscas vermelhas brancas e azuis, e uma camisola Holy Trinity cavada, azul, sobre uma de mangas douradas (o contrário do traje da tarde) e um casaco de cabedal por cima de tudo e os seus cabelos às nuances negras e douradas. E Joe Cocker, com camisola colorida e barriguinha de cerveja com o coro parecendo querer os robes que tiveram de deixar para trás (porque não houve tempo para os tirar das limpezas – verdade) e dois bateristas e um tocador de congas e Chris Stainton escondido lá atrás, mudando de piano para órgão, quando necessário, e Carl Raddle parecendo que vive nas Badlands, com umas maiúsculas BAD, como um Jesse James de 1970 com uma guitarra baixo. Quero dizer, era OUTRA coisa.» – Dave Marsh(12)

 
Capa da Creem de Maio de 1970

Ao longo de sessenta e quatro dias a comuna aerotransportada de artistas (e acompanhantes) acabaria por dar um total de cinquenta e seis concertos em quarenta e oito cidades do norte ao sul dos EUA, num processo que Russell denominaria por “tribalização”, i.e., (SIC) «ter os artistas e a audiência juntos a trocarem canções.»(13)

 
Capa e contra-capa do álbum Mad Dogs & Englishmen


e o seu interior

O álbum, publicado em Agosto de 1970, contava com catorze das melhores interpretações seleccionadas a partir de sessenta e uma músicas tocadas nos dois concertos dados no Fillmore East, de Nova Iorque, nos dias 27 e 28 de Março, ou seja, uma semana depois do início da digressão, e que se tornaram na matéria essencial, quanto amim, para um dos melhores registos ao vivo da década.  A sua produção não esteve isenta de problemas: perante a qualidade das gravações dos concertos, Cordell e Russel desistiram de as trabalhar mas a A&M acabaria por os pressionar e trazer alguém da sua confiança para as recuperar – Glyn Johns foi o escolhido: «Para evitar um potencial desastre para a A&M, acordaram que alguém que eles conheciam e confiavam deveria ser chamado, e suponho que eu era a escolha óbvia. A única coisa errada com as gravações eram os coros estarem fora do tom, então chamei de novo ao estúdio as seis verdadeiras cantoras do coro e utilizei-as nas más gravações, e foi isso apenas o que tive de fazer para além da mistura e de pôr tudo junto.»(14)  

Embora nem todos os grandes sucessos de Cocker apareçam no álbum – With A Little Help From My Friends ou Lawdy Miss Clawdy são dois exemplos... sendo o primeiro flagrante – os “novos” temas, brilhantemente renovados e dirigidos pelo homem da cartola, servem para fazer esquecer a sua ausência quanto mais não seja pela exuberância dos seus intervenientes.  Honky Tonk Woman, dos Rolling Stones (Single, Julho de 1969) é uma abertura compacta e fogosa que, tenho a certeza, os próprios Stones (pelo menos desta altura) subscreveriam como sua.  Sticks And Stones, decalcada sem mais nem menos, da versão de Ray Charles (Single, Junho de 1960) atiça o fogo aceso com o tema de abertura... e até o famoso fôlego de Cocker, às tantas, quase o ia atraiçoando.  Cry Me A River é (mais) um dos grandes momentos do álbum – a canção em si é um clássico: inicialmente composta para ser interpretada por Ella Fitzgerald, acabaria por ser adiada por quase quarenta anos até 1961 quando ela finalmente resolveu gravá-la (LP Clap Hands, Here Comes Charlie!).  Outras versões mais ou menos populares que entretanto e depois apareceram (Ray Charles, Julie London, Barbra Streisand, etc), nenhuma tem a ver com a versão que aparece em Mad Dogs & Englishmen, um verdadeiro momento de soul music, aonde o coro começa por se “exaltar” com o piano (os gritinhos de êxtase místico habituais nas igrejas evangélicas do Sul profundo, aos 00.04…) para passar a acompanhá-lo quando a isso era chamado – atenção à construção entre o órgão e a guitarra (1:22/1:51) e à recuperação gospell do tema (a partir dos 3:05).  Seguem-se dois temas que faziam parte do reportório clássico de Cocker e que separam o lado A do B no primeiro disco em formato vinil, Bird On The Wire e Feelin’ Alright; qualquer deles com uma versão superior às versões anteriormente gravadas por Cocker, quer pelo excelente desempenho dos homens dos teclados, Stainton no órgão e Russell no piano, mas também pela poderosa força que as vozes do coro lhes conseguem incorporar, em especial no primeiro tema – no segundo, Russell agarra-se à guitarra e a sua presença é marcante em vários momentos do tema, pelo menos, para os que têm ouvidos mais atentos.  Depois de um tema de Russell, Superstar, interpretado com toda a magia e ternura que Rita Coolidge então trazia dentro de si – um pequeno favor do “orquestrador, arranjador e condutor” à sua musa, a Delta Lady em pessoa! – Cocker retoma Ray Charles com Let’s Get Stoned (Single, Maio de 1966) justificando-a como um pedido de Bobby Keys, o homem do saxofone.  Limitando-se a “acelerá-la” e a arrastar os coros atrás de si, leva-me a concluir que as Raelettes gravavam com Ray Charles por mero frete.
O Blue Medley que abre o segundo disco, reúne três clássicos da soul music: um de Henry Glover, originalmente intitulado de Drown In My Own Tears que Cocker, uma vez mais, vai buscar a Ray Charles (Single, Janeiro de 1956); no seguinte, When Something Is Wrong With My Baby, de co-autoria do grande Isaac Hayes com David Porter e cuja versão mais popularizada se deve ao duo Sam & Dave (Single, Janeiro de 1967), Cocker faz a introdução e passa a bola a Bobby Jones.  I’ve Been Loving You Too Long, de Otis Redding e Jerry Butler, e lançada em Abril de 1965 pelo próprio Otis, leva-o a uma batalha da qual, pelo entusiasmo do público, julgo ter saído como vencedor.  Girl From The North Country, de Bob Dylan (The Freewheelin’ Bob Dylan, Maio de 1963) que, pelos vistos, se encontrava na audiência, é um tema para “empatar”, tarefa repartida pelos dois grandes nomes do grupo.  Give Peace A Chance que encerra o terceiro lado do álbum, serve para recuperar o espírito do grupo.  Composta por Russell e Bonnie Bramlett e não tendo sido bafejada pela popularidade da sua gémea criada pelo casal-modelo-pacifista Ono & Lennon, cumpre na perfeição o papel para que ambas foram criadas.  She Came Through The Bathroom Window é, como não poderia deixar de ser, um dos momentos altos do álbum (e dos concertos...) servindo, por isso, como um perfeito começo para o sprint final (o lado quatro!) desta maratona.  Os metais ganham uma certa autonomia (1:21, 2:40 e 2:59) salpicando a canção com umas nuances de sabor hispânico e depois, as eternas vozes do coro sempre presentes, com um Russell atento, vigiando a trupe com a sua guitarra a tiracolo (ouçam-no entre o 1:29 e os 2:08) como um verdadeiro guerrilheiro hippie.  Seguem-se-lhe os novos temas de Cocker, por ordem inversa à da seleccionada para o single: Space Captain primeiro e que interpretação (se com ela Cocker não consegue convencer todos os que o consideram apenas como um mero intérprete, menorizando-o assim, então nada mais haverá para dizer para os convencer...); ouçam a partir do 1:47 Russell e os coros a ameaçarem o que viria a acontecer aos 2:30 e aos 3:14.  Pegando em The Letter, o tema principal do single, Russell volta ao piano, mas o que eu gostaria de realçar é, uma vez mais, os coros (aquele anyway ao 1:19 e de novo aos 2:53) e a desbunda funky (3:19, etc), para além da intervenção dos metais (a partir do 1:45 até aos 2:33).  Delta Lady é um excelente trecho para fechar o álbum carregado com o seu quê de nostalgia romântica (Oh when I’m home again in england...) própria de um convicto senhor e cavalheiro do Sul – um extraordinário tema de Russell que, sentado no banco do piano, comandou todo grupo até ao final mas que não satisfeito, no final, resolveu prolongar a festa (3:54).

 
Poster dos concertos no Fillmore West e no Winterland

«Eu sabia que ele era um talento incrível,
e começou como se fosse um irmão mais
velho para mim. Conforme a digressão a-
vançou e toda a atenção caía sobre mim,
ele ficou um pouco invejoso. (...) Mas ele
tomou conta de todo o espectáculo, tornou
-se como que num senhor-de-escravos, em-
bora não fosse tão mau como isso.» – Joe
Cocker(15)

No rescaldo da digressão, Cocker e Russell mal se podiam ver: os excessos de tudo, dos seus protagonismos a um crescente consumo de drogas e álcool, acabaria por os tornar em quase inimigos.

 

Cocker e Leon Russell em palco

Após uma breve estadia em Los Angeles, na casa de Cordell, que Dee Anthony aproveita para o levar até aos famosos Fame Studios, de Muscle Shoals, aonde ele acabaria por ceder e gravar (sem muita convicção, é verdade!) o single, High Time We Went, de co-autoria com Chris Stainton, que viria a ser publicado em Maio do ano seguinte com Black-Eyed Blues como lado B, Cocker acaba por regressar à Inglaterra em Agosto de 1970, deixando para trás a possibilidade de se aproveitar de ser então um dos números mais bem pagos nos EUA: «Se ele regressasse e actuasse nas casas maiores, ele seria um multimilionário.», lamentou-se o seu agente Frank Barsalona à Rolling Stone(16).

 
Publicidade ao single High Time We Went

«Carregando carvão de volta a Newcas-
tle, Cordell e Cocker tinham ajudado a
lançar uma espécie de género rock-gospell
nos Estados Unidos, aonde Delaney and
Bonnie, Ike and Tina Turner, os Rolling
Stones, e o próprio Leon Russell usavam
grupos vocais como coros e progressões
harmónicas sacras para galvanizarem as
suas audiências a sentirem-se parte do
evento em vez de meros observadores pas-
sivos.» – Charlie Gillett(17)

Prémio “Guitarrista do Ano” 1970, da Rolling Stone

________________________
(1)   MARCUS, Greil. “Joe Cocker!”. Records. Rolling Stone, No.52. February 21, 1970. p.52;
(2)   MENDELSOHN, John. “With A Little Help From My Friends”. Records. Rolling Stone, No. 40. August 23, 1969. p.36;
(3)   FONG-TORRES, Ben. “Love Cockers All”. Rolling Stone, No. 60. June 11, 1970. p.39;
(4)   Do início, o grupo foi composto a partir de Chris Stainton como baixista, com os membros do anterior grupo de Cocker, os Big Blues: o guitarrista Dave Hopper e Vernon Nash que passou do piano para a bateria.  Hopper viria a abandonar o grupo e a ser substituído por Frank Myles e, na bateria, a Nash juntar-se-ia Freddy Guite.  Na Primavera de 1968, já o grupo era composto por Chris Stainton no baixo (e já então, definitivamente, líder da banda!), Mickey Gee na guitarra, Tommy Eyre nos teclados e Tommy Reilly na bateria.  No Verão do mesmo ano, Gee e Reilly deixam o grupo e entram Henry McCullough (que aparece em Inglaterra fugido do Canadá depois de ter sido apanhado com droga) e Kenny Slade.  Durante a gravação do primeiro álbum, With A Little Help..., esta formação apenas acabaria por ser utilizada para gravar um único dos seus temas, Don’t Let Me Be Misunderstood.  No início de 1969, Eyre e Slade acabariam também eles por deixar o grupo, e este acabaria por ser reforçado com Alan Spenner no baixo, Neil Hubbard na guitarra ritmo, e Bruce Rowland na bateria, passando Stainton a ocupar-se dos teclados.  É esta a banda que irá acompanhar Joe Coker no glorioso Verão de 1969;
(5)   YORKE, Ritchie. “Joe Cocker: ‘U.S.’s Only Culture is Black’. Rolling Stone, No. 28. March 1, 1969. p.10;
(6)   Denny Cordell tinha-se tornado famoso pelo trabalho de produção no primeiro álbum dos The Moody Blues, The Magnificent Moodies (Julho de 1965), e a partir daí aventura-se a criar a sua própria agência de novos talentos, a New Breed Productions, sob a qual reúne nomes como os The Move, Procol Harum, Tyranossauros Rex e David Bowie – estes dois últimos, ficarão entregues a um jovem músico e arranjador que ele descobrira nos EUA, Tony Visconti.  Para contornar uma castrante falta de financiamento associa-se à Essex Music Publishing, cedendo-lhes parte dos direitos de autoria em troco do financiamento necessário para cobrir as despesas com os estúdios.  Quando em meados de 1967 deixa a DERAM para a EMI, a fim de evitar futuros problemas opta por criar uma nova companhia, a Straight Ahead Productions, que irá ser a animadora em regime de quase-exclusividade da Regal Zonophone, uma subsidiária da EMI.  Ao mesmo tempo e procurando conquistar o grande mercado dos EUA, assina contrato com a A&M para a representação das suas produções;
(7)   Transportados em helicóptero até ao recinto, Cocker num, os membros da Grease Band num outro, alguém terá oferecido LSD a estes – Cocker, apesar dos rumores em sentido contrário, garante que estava “limpo”!  A sua actuação, a abrir o terceiro e último dia do festival, iniciou-se algures entre as duas e as três horas da tarde e prolongou-se por cerca de hora e meia.  As duas primeiras músicas (Who Knows What Tomorrow May Bring e 40,000 Headmen) entregues exclusivamente à banda, serviram como uma espécie de aquecimento para a actuação de Cocker, que arrancou com Dear Landlord, prosseguindo com Something’s Coming On, Do I Still Figure In Your Life e pelas inevitáveis Feelin’ Alright, Just Like A Woman e Let’s Go Get Stoned, passando então a um tema menos conhecido, I Don’t Need No Doctor, seguido de dois “clássicos”, I Shall Be Released e Hitchcock Railway, quebrados por Something to Say e, terminando com um, a todos os títulos, memorável With A Little Help From My Friends.  A sua actuação acabaria por passar despercebida para a crítica musical presente – a Rolling Stone, por exemplo, na sua edição dedicada ao evento (No. 42, de 20 de Setembro de 1969), limita-se apenas ou a mencionar que ele esteve lá, ou a comentar que ele serviu apenas para preencher a ausência de músicos negros, referindo-se a ele num tom pouco simpático: «(…) mas cinzento em vez de negro» (p. 24) ou «Mas não é explicável, quando um espectáculo ‘escuro’ como o providenciado por Cocker é oferecido como a perdoável alternativa.» (p. 26).  Quando o filme realizado por Michael Wadleigh começou a ser exibido em meados de Março de 1970, Cocker acabaria por se tornar numa das suas referências...;
(8)   OSE. Bård. “Kvinner og galskap”. BA. Bergen. 4 Mai 1988; Reproduzido por GJERSTAD, Linn, em Bård Oses intervju med Leonard Cohen.  BA. Bergen. 26.03.2012;
(9)   Henry McCullough (guitarra) e Alan Spenner (baixo) juntam-se à nova formação dos Spooky Tooth e participam na gravação do seu quarto álbum, The Last Puff (Julho de 1970), que viria a ser produzido por Chris Stainton.  Bruce Rowland (bateria) junta-se a Terry Reid e, posteriormente, aos Heavy Jelly.  Os três acabariam por se reunir para a gravação da banda sonora do filme Jesus Christ Superstar (Setembro de 1970), enquanto paralelamente, mantinham viva a Grease Band que viria a lançar o seu primeiro LP, The Grease Band, em Abril de 1971;
(10) CROUSE, Timothy. What’s Going On Here, Joe Cocker?”. Rolling Stone, No. 109. May 25, 1972. p.20;
(11) MENDELSOHN, John. “Mad Dogs And Englishmen.” CD Remastered edition booklet. 1997. p.3;
(12) MARSH, Dave. “Mad Dogs And Englishmen. Learnin’ To Live Together”. Creem. May 1970. in Creem: America’s Only Rock ‘n’ Roll Magazine. Creem, 2007. HarperCollins:New York. pp.34/36;
(13) FONG-TORRES, Ben. “Rolling Stone Interview: Leon Russell”. Rolling Stone No. 72. December 10, 1970. p.34;
(14) TOBLER, John. “Mad Dogs And Englishmen.” CD Remastered edition booklet, 1997. p.7;
(15) SNOW, Mat. “All Together Now: Joe Cocker”. Q Magazine. May, 1992.  in CARPENTER, Bill. Note Sleeves do CD Leon Russell Retrospective. 1997. The Right Stuff. p.4;
(16) CROUSE, Timothy. “What’s Going On Here, Joe Cocker?”. Rolling Stone, No. 109. May 25, 1972. p.21;
(17) GILLETT, Charlie. “Echoes From The City Centres, 1962-71”. The Sound Of The City. The Rise Of Rock And Roll. New York:First Da Capo Press. 1996, 1970 e 1983. pp.395/396.


2 comentários:

  1. SEM PALAVRAS PARA TUDOOOOOOOOOOO SOBRE JOE COCKER......FAZ PARTE DA MINHA VIDA....... SEMPRE...... EU AMO... SEM CONHECE-LO PESSOALMENTE, MAIS COM CERTEZA..... TOMARIAMOS VARIAS GELADAS....MUIITO BOA PESQUISA... FOI UM PRESENTE PRA MIM.. THANKS........(MEU PRIMEIRO BACK...KKKK FOI AO SOM DO JOE.... JAMAIS ESQUECEREI..... E ELE É TUDO....SE TE INTERESSAR..... MEU NOME É CLAUDIA CERRI TO NO FACE...e.mail claudiacerri_makeup@hotmail.com.. SERÁ UM SUPER PRAZER....MORO EM FLORIPA...TRABALHO COM MAKEUP/HAIR.. PRODUÇÃO DE ARTE, E FIGURINO....AMEI TUDO.. DA SINAL E FUMAÇA.. THANKS

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    1. Olá Claudia e obrigado pelo comentário. Eu conheci Joe Cocker a partir de With A Little Help From My Friends e desde então até 1975, não deixei de o seguir com toda a atenção. Uma vez mais, obrigado pelas suas palavras

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