«Com Morrison a empurrar o grupo para uns vinte minutos da sua própria “Gloria”, noite após noite na sala de baile de uma missão de marinheiros conhecida por Maritime Hotel (...)»(1), é assim que Greil Marcus reinventa os Them, na Primavera de 1964, no seu então natural antro, o Club Rado do Maritime Hotel de Belfast, quando eles, segundo Van Morrison, o já então consagrado líder do grupo, ainda eram os Them: é que, segundo ele próprio, «Depois de Belfast nem sequer eram os Them, apenas eu e alguns do grupo e quem circulava pelos estúdios nessa altura.»(2) – se acham um exagero os tais vinte minutos considerem-se (con)vencidos pois alguém em Austin, Texas, até se lembrou de fazer uma “gloriatona” de vinte e quatro (24) horas sem qualquer interrupção e que, pelos vistos, até a conseguiu com algum sucesso...
Morrison crescera rodeado de sons importados dos EUA – o pai, um
ateu que vivendo numa Irlanda do Norte ocupada pela Inglaterra e dilacerada por
uma guerra civil religiosa, optara por montar o seu lar na zona protestante da
cidade (a zona pró-britânica) muito provavelmente devido às fraquezas
religiosas em que frequentemente caía a sua esposa, alimentava uma colecção de
discos importados do outro lado do Oceano, iniciada antes e continuada depois
de ele próprio, nos anos cinquenta, ter passado uns tempos na então para
qualquer irlandês de boa cepa, quase mítica América [You
were just trying to make a living out in Detroit/ When you came back off the boats, you didn’t want to go
anywhere – Van
Morrison(3)], período que para
ele, entre outros episódios, recorda assim: «Ele
mandou-me algumas roupas americanas, mas as outras crianças ficaram com inveja
delas.»(4)
Van Morrison
Van
Morrison: «Eu ouvi uma data de
discos de blues... sempre os tivemos.»(2) e, claro, havia a influência das estações radiofónicas
da American Forces Network, a famosa
AFN (And I’m
searching for/ Luxembourg, Luxembourg/
Athlone, Budapest, AFN/ Hilversum, Helvetia/ In the
days before rock ‘n’ roll – Van
Morrison(5)) espalhadas por
toda a Europa “libertada” do jugo
Nazi pela hegemónica força bélica dos EUA.
Aos onze (mas muito provavelmente, aos doze) anos, já Morrison
fazia parte de um grupo cujo objectivo era o mercado das festas locais, tendo
como base do seu reportório a reprodução o mais fiel possível, dos sucessos
vindos do outro lado oceano. Três anos
depois abandona a escola optando assim, em definitivo, por uma carreira musical
que acabará por o levar a bandas que faziam o circuito ligado às bases
militares dos EUA espalhadas pela Europa continental... «eles
iriam chamar-se a eles próprios the Monarchs ou the Thunderbirds, ou alguma
outra coisa que calhasse» resume Greil Marcus esse período(6).
Cumprindo o circuito por três anos, uma vez mais ele acaba
de regresso a Belfast e é lá que se vai encontrar com os The Gamblers: «o Billy
e eu, uma noite, fomos juntos ver o espectáculo dos The Manhattan. Mais tarde, estávamos
a falar com o (saxofonista) Van Morrison, e o Van disse, “bom, eu gosto de
fazer as partes de rhythm and blues, mas o resto passo bem”, e o Billy disse “Nós
temos um grupo de rhythm and blues, por que não te juntas a nós?” Uma semana
depois, o Van era um elemento permanente.»(7) – recorda Eric Wrixon,
o homem das teclas do grupo. Billy era
o Billy Harrison,
o guitarrista e vocalista e, de algum modo o então líder do grupo e os
restantes membros, eram o baixista Alan Henderson e o baterista Ronnie Millings. Sobre esta reunião, Johnny Rogan sugere que o nome do novo grupo partiu de Eric Wrixon:
«O jovem Wrixon sentiu que a ausência do artigo definitivo ‘the’
os iria distinguir das legiões de novos grupos rivais»(8) e Billy Harrison confirma, categórico, que «o Eric apareceu com o nome Them»(7) – Them tinha a ver com o filme com o mesmo título
que explorava o terror da ameaça nuclear enquadrada na paranóia maccarthista da Guerra Fria.
Them... o filme
Os Them, o tal novo grupo, actua pela primeira vez no
Club Rado a 10 de Abril de 1964, uma
sexta-feira, perante uma audiência de cerca de 60 pessoas(9) mas ainda sem a presença de Morrison – o Rado tinha passado recentemente para as mãos de três empresários conhecidos
por os 3Js que apostavam num local
para jovens amantes de rhythm ‘n’ blues e que, impacientes, exigiam a presença
do grupo como os representantes da cena irlandesa.
Na semana seguinte, para a segunda actuação do grupo no
clube, Van
livre dos seus anteriores compromissos, junta-se aos restantes membros do grupo
e, aos poucos, começa a tomar conta dos vocais e a liderar a banda ao sucesso
[«Na primeira noite havia 40 pessoas; na segunda havia cem;
na terceira semana eles faziam fila antes das seis horas para entrar.»
– Billy Harrison(7)]
«O Van era
selvagem, o Van era o me-
lhor. Naquela época ele era muito bluesy.
Quando ele subia ao palco, ele perdia a
cabeça.» – Gwen Carson(10)
Phil Solomon que apenas aceitara tomar conta dos destinos do grupo
depois de ter ouvido uma gravação pirata enviada por um fã anónimo(11), perante o sucesso alcançado pelas suas actuações ao
vivo no Maritime Hotel, decide dar o
passo seguinte que, naturalmente, era o de os levar até a um estúdio, o que
acontece em Maio com duas datas diferentes, aonde pudessem gravar uma série de demos com vista à sua distribuição pelas
principais etiquetas do mercado britânico.
John Tracy, no texto escrito para uma das muitas colectâneas do
grupo(12), sugere que, entre
outros títulos, os Them teriam gravado nessa altura uma primeira
versão de Gloria tendo Tommy Scott como co-produtor mas que,
no que toca a membros do grupo, contou apenas com a presença de Van e do
baixista Alan
Henderson. Em substituição
dos restantes membros, Scots (nome
com que Tommy assumiu a produção dessas
demos!) acabaria por recorrer a
músicos de estúdio... Jim Armstrong
na guitarra, John Wilson na bateria
e, para os restantes diversos instrumentos, o multi-instrumentista Ray Elliott. Se essa sugestão de Tracy alguma vez se vertificou a verdade é que, até hoje, não se
descobriram as ditas gravações.
Entretanto sai o primeiro single do grupo tendo como tema principal (i.e., no lado A), Don't Start Crying Now e, no outro, One Two Brown Eyes – um verdadeiro fiasco
comercial por parte de Phil Solomon que
foi quem optou por estas escolhas de entre os temas gravados.
Entra então em cena Dick
Rowe, o híperpesquisador de mercados da Decca Records que, depois de uma das suas muitas já habituais brilhantes
ideias – neste caso a de expandir o universo de recrutamento da editora que
representava, a outros cantos do império britânico – e, depois de ter acesso a
uma gravação “doméstica” de uma actuação dos Them (uma vez mais) enviada por um
dos seus fãs, inscreve-os numa lista de possíveis grupos a ouvir.
Pouco depois de assinarem com a Decca, Rowe e Solomon, os adultos gananciosos, marcam
uma urgente sessão de gravação de possíveis temas de um single fundamental para a carreira do grupo, para 5 de Julho de
1964, nos estúdios Decca Three em West
Hampsteadec: é lá que a versão que conhecemos de Gloria
será gravada!
Os Them na altura da gravação de Gloria
(Peter
Bardens, Alan Henderson, Van Morrison, Billy Harrison, Pat McAuley)
Ao certo não há a certeza sobre quem participou nessa
sessão... há quem afirme que para além de Van Morrison, os restantes membros do grupo estavam
todos presentes e que contribuíram para a gravação; outros – a vasta maioria! –
afirmam que eles teriam sido substituídos por músicos de estúdio (adiantando os
mais “esclarecidos”, os nomes de Bobby
Graham na bateria e de Arthur
Greenslade nas teclas...) e há ainda quem garanta a presença do então já
conceituado músico de estúdio Jimmy Page(13).
Independentemente de todos estes pequenos enredos cheios
de mistério mas a que quase ninguém até Hoje, prestou qualquer importância, Gloria acabaria por se tornar num dos
clássicos do Rock – razões para isso... bom, sem dúvida alguma, a principal delas
é a sua composição básica reduzida aos famosos 3 acordos, num ritmo primário sem
qualquer variação e, por isso, muito próxima do rock ‘n’roll do começo dos Tempos
[ou, como dizia em 1972, um verdadeiramente empolgado Lester Bangs: «Isto, malta, é o
Rock of Ages»(14)] mas, evidentemente, servida por uma letra sexualmente sugestiva e, portanto,
recuperando a tradição fundamental dos originais clássicos de rhythm ‘n’ blues,
ah, e claro, sem contar com a indiscutível interpretação vocal de Van Morrison
das suas próprias palavras: quando ele canta (e como canta!) When she comes to my house/ She knocks upon my door/ And then she comes in my room/ Yeah, an’ she make me feel alright, todos
nós sabemos (excepção feita aos mais ingénuos e aos absolutamente tolos) que o
que ele celebra nada tem a ver com o habitual, então contemporâneo, she
loves you, yeah, yeah, yeah…
«Uma das poucas
canções de rock que
é realmente tão atrevida quanto a sua
reputação – a não ser para quem ache
que ela vai até ao quarto dele para con-
versar. Van Morrison canta ‘Gloria’
num coaxar lascivo, como um sapo de-
mente, com tesão, mas não significa-
ria nada sem a ímpia guitarra, supos-
tamente tocada por Jimmy Page, que
completa um ar tão exótico quanto e-
rótico. (...) A canção verdadeiramente
indecente jamais gravada.»
– Dave Marsh(15)
O
single Baby, Please Don’t Go
e o seu lado B, Gloria
Relegada para “o outro
lado” do single Baby, Please Don’t Go [uma cover de um clássico tema de blues urbano popularizado por Big Joe Williams mas aqui interpretado via
John Lee Hooker, na sua versão de
1959] que viria a ser disponibilizado pela Decca
Records ao público britânico a 6 de Novembro de 1964. Cerca de dois meses depois, a 7 de Janeiro de
1965, o single entra nas tabelas
britânicas aonde, muito à custa do seu “outro
lado”, subiria ao #10. Com o tempo –
quem é que hoje se lembra do tema que foi escolhido para título principal e
que, por um algum tempo, «serviu como indicativo
do influente programa de música pop da televisão do RU, o Ready Steady Go»(11)?... e no entanto, ela ainda Hoje é parte da herança genética
do Rock – Gloria acabaria por se tornar no
seu verdadeiro lado A, facto que veio a concretizar-se quer nas seguintes
reedições do single no Reino Unido,
quer na sua edição para o mercado dos EUA.
Capas
das edições dinamarquesa e francesa
Os “famosos 3
acordos” abrem o tema e insistem, matraqueadores, até aos 0:49 segundos
mesmo apesar da quase imperativa introdução vocal de Morrison (aos 0:06) e das inúmeras (definitivamente
inconsequentes) ameaças de mudança de ritmo feitas por “breaks” da bateria... À
passagem para o 1:08, a guitarra solta-se num solo que se prolonga por uns dez
segundos (1:08-1:19) dando então lugar a uma verdadeira quebra de ritmo, a uma
pulsação dramática aonde os restantes “instrumentos” (em especial o orgão e a
voz) acabam por reclamar um papel mais exigente e, a partir do 1:44, Van toma
conta da canção (Comes a-walkin' down my street/ When she comes to my house/ She knocks upon my door...), é então que o
baterista “bate na porta” (aos 2:00) dando início à parte final da canção que
se estende numa quase caótica desbunda instrumental.
Tal como garante Erik
Hage, no que se refere às muitas versões e covers do tema, «poucas versões
confrontam a original, com o escaldante e selvagem Morrison, lamentando-se vigorosamente
a berrar as letras do título e a guitarra sempre a rugir primitivamente»(16) mas mesmo assim gostaria de destacar a primeira delas
todas, a de um grupo de Greenwood, Mississippi, os The Grants, em Novembro de 1965, no álbum Roadrunner – porque apenas foi a primeira! – a dos Shadows of Knight em Dezembro desse
mesmo ano porque, por um breve período se aproveitaram da “lavagem” da letra na
sua versão (de She comes to my room para She
calls out my name... um verso mais aceitável à auto-censura imposta por
várias estações dos EUA), conseguindo assim “roubar” o sucesso aos Them, uma evidência demonstrada pelas posições
alcançadas nas tabelas dos EUA (a deles, a dos Shadows of Knight, em Março de 1966 atinge o #10 da Billboard 100, a dos Them, com
entrada um mês depois, com muito custo, chega ao #71) e, evidentemente, a de Patti Smith (LP Horses, Dezembro de
1975) pela sua abordagem muito pessoal, tornando-a numa espécie de fénix do Rock,
ao conseguir transformá-la num dos hinos do punk
rock com a sua inesquecível provocante introdução: Jesus died for somebody's sins/
But
not mine.
Disponibilizo uma série de outras versões -
provavelmente, um centésimo das que existem registadas.
Gloria - Them
(Van Morrison)
Like to tell ya about my baby
You know she comes around
She about five feet four
A-from her head to the ground
You know she comes around here
At just about midnight
She make ya feel so good, Lord
She make ya feel all right
And her name is G-L-O-R-I
G-L-O-R-I-A (Gloria)
G-L-O-R-I-A (Gloria)
I'm gonna shout it all night (Gloria)
I'm gonna shout it everyday (Gloria)
Yeah-yeah-yeah-yeah-yeah-yeah
She comes around here
Just about midnight
Ha, she make me feel so good, Lord
I wanna say she make me feel alright
Comes a-walkin' down my street
When she comes to my house
She knocks upon my door
And then she comes in my room
Yeah, an' she make me feel alright
G-L-O-R-I-A (Gloria)
G-L-O-R-I-A (Gloria)
I'm gonna shout it all night (Gloria)
I'm gonna shout it everyday (Gloria)
Yeah-yeah-yeah-yeah-yeah
Looks so good (Gloria) alright
Just so good (Gloria) alright, yeah
«Agora é um clássico.
Cada grupo toca-a e, consistentemente, regressa como um dos temas requisitados.»
– Carol Deck(17)
«Ela irá ser
ouvida enquanto o rock ‘n’ roll durar e nunca soará menos actual do que no dia
em que eles a gravaram. Um paraplégico pode-a dançar – ela tem a magia que o
libertará como algumas canções dos Spoonful ou alguém mais.» – Lester Bangs(14)
«(…) um incrível
single do início de 1966 que capturou tudo que os Them alguma vez foram –
zangados, desafiadores, arrogantes, talentosos, e arruaceiros.»
– John Grissim Jr(18)
«“Gloria”, um hino
à luxúria adolescente ligada a um riff hipnótico, mais tarde adoptado por
aspirantes a bandas de bar.» – Colin Larkin(19)
«Imbecil, simples
e brutal, "Gloria", o hino de Van Morrison à luxúria, tornou-se no
tema que todos os guitarristas de três acordes queriam emular
(…).» – 1001 Songs You Must Hear Before
You Die(20)
______________________
(1) MARCUS, Greil. “Introduction”.
When That Rough God Goes Riding.
Listening To Van Morrison. Public Affairs: New York. First Edition. 2010. p. 3
(2) MARCUS,
Greil. “Van Morrison”. Rolling Stone No. 62, July 9, 1970. p. 31;
(3) MORRISON,
Van. “Choppin’ Wood”. LP Down
the Road. Universal Records. Maio de 2002. Faixa 1;
(4) YORKE,
Ritchie. Van Morrison. Into The
Music. Charisma Books: London. 1975. p.
20;
(5) MORRISON,
Van. “In the Days Before Rock ‘n’
Roll”. LP Enlightenment. Polydor Records. Outubro
de 1990. Faixa 7;
(6) MARCUS,
Greil. “Van Morrison”. Rolling Stone No. 62, July 9, 1970. p. 30;
(7) HODGETT,
Trevor. “Ford transit Gloria Mundi”.
Albums. Mojo Issue 50, January 1998.
p. 92;
(8) ROGAN,
Johnny. “The Sectarian Divide”. Van Morrison: No Surrender, Vintage
Books: London. 2006. p. 83;
(9) ROGAN,
Johnny. “Maritime Blues”. Van Morrison: No Surrender, Vintage
Books: London. 2006. p. 84;
(10) ROGAN, Johnny. “Maritime
Blues”. Van Morrison: No Surrender,
Vintage Books: London. 2006. p. 85;
(11) LARKIN, Colin. “Them”. The Virgin Encyclopedia
Of Sixties Music, Virgin Books: London. 1997. p. 440;
(12) TRACY, John. Sleeve Notes do CD THEM. The Decca Record Co. Ltd. London. 1988. p. 4;
(13) THOMPSON, Gordon. “Select Discography. Them”. Please Please Me. Sixties British Pop,
Inside Out. Oxford University Press: New York. 2008. p. 303;
(14) BANGS, Lester. “Spawn of the Dublin Pubs: Them Creatures and
a Wight Named Van”. Sleeve Notes do LP Them
Featuring Van Morrison. The Decca Record Co. Ltd. 1972;
(15) MARSH, Dave.
“69 Gloria, Them”. The Heart Of Rock & Soul: The 1001
Greatest Singles Ever Made. Da Capo Press: New York. 1999. p. 49;
(16) HAGE, Erik. “The Story of Them. 2 Them and “Brown Eyed Girl” (1964-1967)”.The Words And Music Of Van Morrison. Praeger
Publishers: Westport. 2009. p. 21;
(17) DECK, Carol. “The Mystic ‘Them’”. The Beat.
KRLA Edition. Vol. 2, Nr. 7. April
30, 1966. p.6;
(18) GRISSIM JR, John. “Van Morrison”. Rolling Stone,
Issue No. 111. June 22, 1972. p. 36;
(19)
LARKIN, Colin. “Them”. The Virgin Encyclopedia
Of Sixties Music, Virgin Books:
London. 1997. p. 441;
(20) “Gloria”. 1001 Songs You Must Hear Before You Die. Editor: Robert Dimery. Quintessence
Book: London. 2010. 2011. p. 876.