Era uma vez, há muitos muitos anos, quando a chamada Geração Beat se estabeleceu na então conhecida por tolerante cidadela de S. Francisco, em torno da City Lights Bookstore, o antro original dos seus comparsas do movimento Renaissance e que, segundo as autoridades locais (e não só!), por influência deles, acabaria por se tornar num covil dado à promiscuidade ao ter promovido a leitura, em voz alta, de parte de uma obra “obscena” do poeta Allen Ginsberg, Howl (“Vi os melhores espíritos da minha geração destruídos pela loucura, morrendo à fome histéricos nus...”[1]) que, quanto muito, segundo as mentes mais liberais da altura, deveria apenas ser sussurrada, eis que o vírus que eles cultivavam nas suas dementes entranhas cerebrais, aos poucos, acabaram por se espalhar por toda a cidadela e arredores e por, inevitavelmente, contagiar as suas almas mais inocentes. Do muito que havia em comum entre eles, como a propensão para a alienação social, a obsessão orgulhosamente desequilibrada pelo sexo ou a busca obstinada de consciências artificiais através do uso de drogas, o que aparentemente menos os unia eram as suas preferências musicais: se os Beats se entregavam ao êxtase proporcionado pela construção marginal, livre, do novo jazz (o chamado bebop), os seus pósteros recorriam ao folk enquanto «idioma da alienação»[2]... mas nada de sobrenatural quando ambos os universos se encontravam nos clubes e cafés da vizinhança, onde tão depressa se podia ouvir um Bob Dylan recriando um antigo tema tradicional de folk ou um Thelonious Monk improvisando num velho piano sobre, se calhar, o mesmo tema, é que «[Q]uando Dylan o informou de que ele tocava música folk, um pouco mais acima, Monk respondeu-lhe, “Todos nós tocamos música folk.”»[3].
«Em Nova York, quando começaram a chegar todos
aqueles da Califórnia e do Colorado, como Judy Collins, os antigos puristas de
folk começaram a passar mal. Quero dizer, Nova York era muito difícil e académica
em música folk; Boston ainda era pior.» – Kevin Ryan[4]
Mas de toda essa malta que se juntou em Nova Iorque, da Judy Collins ao Bob Dylan, passando por Tim
Hardin ou por Dino Valenti, este último é o que nos interessa
para já...
Dino
Valenti em plena época folk
Sobre ele, Carl
Gottlieb, o co-autor da “autobiografia”
de David Crosby, Long Time Gone, é peremptório ao afirmar que ele, só por si, «merece uma história própria»[5] e assim, sem grandes pretensões, vamos a ela: quando em meados da década
de cinquenta, ele chegou a Greenwich Village e resolveu adoptar o nome de Dino Valenti
apenas (julgo eu!) pretendia esquecer o Chet Powers que até então tinha sido... um puto
rufia que crescera no ambiente semi-nómada dos feirantes onde os pequenos
esquemas de marginais sem qualquer sentimento de culpa associado, faziam parte do seu dia-a-dia – Catherine, a sua irmã: «(...) a maioria dos feirantes eram desajustados de um tipo ou
outro, e alguns eram criminosos escondendo-se das autoridades. Outros não se
encaixavam em qualquer tipo de sociedade e alguns estavam apenas à frente do seu
tempo.»[6]. Aos 17 anos, por
pressão da mãe, alista-se na Força Aérea dos EUA, aonde, em pouco tempo, é dado
como dispensável (sinónomos: desnecessário, não essencial, substituível) [«Na avaliação psiquiátrica de Dino pela Força Aérea lê-se “Chester
Powers é capaz de fazer qualquer coisa a que ele se disponha, no entanto, ele
acha que toda a Força Aérea dos Estados Unidos deve proceder de acordo com sua
maneira de pensar.”»[6]] e pouco depois, está em Nova Iorque, fazendo parte do
circuito folk e da vida boémia associada
ao mesmo.
Em finais de 1960, ruma ao sul e pára em Los Angeles,
onde se deixa ficar por mais um ano. Daqui,
parte para S. Francisco e, ao longo do ano seguinte (1962), torna-se num dos elementos
mais “hip” da comunidade local de
jovens rebeldes, graças a, entre outras coisas, 1) residir num ferryboat afundado numa praia de
Sausalito, o Charles Van Dam, que ele
transformará numa residencial livre e «Suficientemente
grande para abrigar multidões de viajantes e seus carros, (...) e tornar-se no lar para (...) uma horda de diversos fugitivos, empregadas de mesa,
músicos e liceais locais fascinadas pela nova música e o tipo bizarro que a
fazia»[5], 2) por ser co-proprietário (com Crosby) de um local que era «um
café em cima e um salão de dança para liceais em baixo»[7] aonde, segundo este, eles os dois «passavam por
todas aquelas adolescentes como tubarões por um mar cheio de marinheiros»[7] e, talvez o mais importante, 3) por fazer parte de um círculo de dotados e, cada vez mais
notáveis jovens músicos, como Crosby,
Paul Kantner e David Freiberg, unidos por um laço tão determinante quanto era a ilicitude
da sua então “outra” grande paixão – Crosby: «Tínhamos
de estar num círculo para que pudéssemos fumar sem que ninguém nos visse.»[7] – sim, falo de erva!
No início de 1964, pressionado pelo ex-engenheiro de som Jim Dickson que recentemente criara a Tickson Music, uma editora vocacionada
para a cena folk de S. Francisco e
arredores, o «cigano esquivo»[8], como era conhecido Valenti, aceita entrar nos World Pacific Studios e gravar algumas das suas composições, entre
as quais a versão original da sua mais clássica contribuição para a música
popular, o tema Get Together. Mais ou menos na mesma altura, Dickson grava também nos mesmos
estúdios, uma outra versão da canção com Crosby
[Dickson: «O
David conhecia-me porque eu tinha gravado o Dino Valenti e dado um adiantamento
de cem dólares por uma canção chamada “Get Together”. Eu e o Eddie Tickner. Era
a nossa primeira canção para a nova editora que estávamos a começar porque eu
estava a ter problemas com os discos de música folk. (…) O Dino precisava do dinheiro para a prestação do carro.
Ele estava prestes a perdê-lo nesse dia, então demos-lhe 100 dólares pela sua
canção e foi assim que começámos a editora.»[9]] mas ambas versões, acabarão por se manter inéditas pelas décadas
seguintes.
A primeira versão publicada da canção, com o título de Let’s
Get Together, é a do grupo de folk
The Kingston Trio, no seu álbum registado
ao vivo no hungry i de S. Francisco,
Back in Town (Capitol Records, Junho de 1964), mas ela passará completamente
incógnita por entre os outros temas mais conhecidos do grupo. Um ano depois, os We Five, um outro grupo de música folk que, tal como os The
Kingston Trio, estavam sob a tutela do manager Frank Werber, publica a sua versão em single (A&M Records,
Novembro de 1965) que, em pouco tempo, consegue subir até ao #31 da tabela
nacional da Bilboard Hot 100.
Claro, com o aproximar de 1966, a letra começava a fazer mais
sentido para toda aquela multidão de almas gentilizadas da chamada geração freak, muito mais do que na altura em
que ela fora escrita (meia década antes!), muito provavelmente (uma vez mais, deduzo eu!) acerca
dos feirantes e das suas desavenças e brigas, e da necessidade de união entre
eles... a não ser que ele fosse um profeta!
Cerca de dois anos depois, em finais de Agosto de 1967, a
canção, retomando de novo o seu título original, Get Together,
volta às tabelas da Bilboard numa versão
folk-rock, através dos The Youngbloods... muito lentamente, na
primeira semana de Outubro desse ano, chega ao #62 mas eis que, oitenta e nove
semanas depois, ela reaparece na Bilboard
Hot 100 e, no último dia de Agosto de 1969, atinge o #5, onde se queda por
mais uma semana – não posso, por isso, deixar de imaginar os sentimentos de um Dino ao
ver a “sua” canção interpretada por outros,
a tornar-se em «uma das mais gravadas e populares de todas
as composições de música pop contemporânea nos anos recentes»[10] mas ele, em 1966, tinha vendido em definitivo, todos os seus direitos
sobre a canção à SFO de Frank Werber, para poder pagar os
custos com um processo judiciário que terminaria, como ele descreveu a Ben Fong-Torres, no ter sido «o primeiro gato na Califórnia a ter saído sob fiança da
penitenciária estadual, enquanto aguardava a decisão de um recurso de habeas
corpus»[8], isto, depois de ter passado nove meses (há quem fale em
dois anos: um evidente exagero!) na famosa Folsom State
Prison, por ter sido apanhado com marijuana, primeiro, enquanto conduzia o
carro de um amigo, segundo, pouco depois, enquanto aguardava julgamento, o que
levou a polícia local a fazer uma busca domiciliária ao lugar onde ele dormia e aí, à
descoberta de mais marijuana e anfetaminas.
Segundo o mesmo Fong-Torres: «Assim, Valente perdeu algo como $20,000.»[8], um cálculo arriscado de se fazer pois até à altura (e estamos a falar do começo do ano de 1969!), dela
teria havido até então – segundo as minhas contas – mais de uma dezena de versões
publicadas das quais destaco, naturalmente, as dos Jefferson Airplane (gravada em solidariedade para com o amigo
detido?) e, por honestidade, a dos The
Youngbloods. Arrependido de ter tomado essa decisão? Dino Valenti: «Muita gente diz que fui estúpido por vender
todos os meus direitos sobre a canção mas por dez anos da minha vida, meu, eu
posso sempre escrever uma outra canção.»[8]
Uma curiosidade relacionada com a segunda detenção de Dino: ela
deu-se precisamente dois dias depois de o seu amigo John Cipollina ter saído em liberdade (sim, uma sentença por posse
de marijuana) quando ele ia a caminho de casa depois de um ensaio com o “seu” novo grupo que incluía David Freiberg (também ele recentemente saído da prisão... claro, marijuana!) e um amigo deste, Jim
Murray que, por sua vez, arrastou consigo o Cipollina... que recorda assim o acontecimento: «Uma noite, conversámos acerca de ensaiar e planeámos ensaiar
na noite seguinte, mas nunca aconteceu. No dia seguinte, o Dino foi apanhado.»[11] Uns bons meses depois, os três acabariam
por formar os Quicksilver Messenger
Service.
Dino
Valenti em liberdade
Uma das condições impostas pela Adult Parole Authority para a aprovação da liberdade condicional
(por três anos) de Dino, foi a de que ele cumprisse o contrato
entretanto assinado com a Epic Records.
Desse contrato terá saído em finais de 1968, o LP Dino Valenti que, com o single Don’t Let
It Down/“Birdses”
(Elektra Records, Setembro de 1964) e
duas faixas (Black Betty e Live Is Like That) incluídas numa obscura
colectânea com o título de Early L.A.
(Together Records, início de 1970), acabariam
por fazer parte da sua escassa discografia a solo com ele ainda vivo.
Dino
Valenti nos QMS
Para a sua actuação no Winterland de S. Francisco, na passagem de ano de 1969, os então sobreviventes
da Quicksilver Messenger Service em
vias de extinção, resolvem convidar o seu ex-parceiro Gary Duncan a regressar ao grupo e este aceita impondo como condição que Dino, com quem ele então vinha a actuar, passasse também a integrar
a banda[12]: cinco anos depois, Dino Valenti está de regresso à «banda do Dino» [Freiberg: «Eu conhecia-os a
todos (John Cipollina e Jim Murray) porque
eles iam estar na “banda do Dino”.»[13]]
Os
Quicksilver Messenger Service em 1969
(A
partir da esq.: Valenti, Freiberg, Duncan, Greg Elmore e Cipollina)
Get Together
(Chet Powers)
Love is but the song we sing
And fear’s the way we die
You can make the mountains ring
Or make the angels cry
Know the Lord is on the wind
And you need not know why
Oh people now, get together
Well, smile on your brother
Try to love one another right now
Some will come and some will go
But we will surely pass
When that which one has left us here
Returns for us at last
People we are but a moment’s sunlife
Fading on the grass...
I say, come on now, get together
Smile on your brother
Try to love one another right now
Well, if you hear the song and sing
And you must understand
You hold the key to love and fear
All in your trembling hand
One key unlocks them both, you know
It’s in your command
All people, now get together
Well, smile on your brother
Try to love one another right now
_______________________
[1] GINSBERG, Allen. “Uivo”. Uivo e Outros Poemas. Selecção e tradução
por José Palla e Carmo. Publicações Dom Quixote: Lisboa. 1973. 2.ª
edição, 1979. p.11;
[2] LYTLE,
Mark Hamilton. “1964: Welcome to the
1960s. The Sixties, 1964-68”. America’s
Uncivil Wars: The Sixties Era from Elvis to the Fall of Richard Nixon.
Oxford University Press: New York. 2006. p.147;
[3]
WILENTZ, Sean. “Penetrating Aether: The Beat Generation and Allen Ginsberg’s America.
Part I: Before”. Bob Dylan In
America. Doubleday: New York. 2010. p.67;
[4] CROSBY,
David, e GOTTLIEB, Carl. “Three”. Long Time Gone. Reissue Edition. David Crosby & Carl Gottlieb.
2007. p.54;
[5] CROSBY,
David, e GOTTLIEB, Carl. Op. cit.
p.67;
[6]
POWERS, Catherine. “The
Beginning – told from my eyes.”
Dino Valenti: Smile On Your brother.
Disponível em
<http://www.dinovalenti.com/gettogether.htm> Acesso em: 7.Maio.2015;
[7] ZIMMER,
Dave, e DILTZ, Henry. “Crosby: Traveling Folk Days. The Early Years”.
Crosby, Stills & Nash: The Biography.
Da Capo Press: Philadelphia. 1984, 2008. p.17;
[8] FONG-TORRES, Ben. “Dino Valente”. Rolling Stone,
No. 26. February 1, 1969. p.23;
[9]
CROSBY, David, e GOTTLIEB, Carl. “Four”. Op.
cit. p.77;
[10] GLEASON, Ralph
J.
“Liner Notes”. LP Dino Valenti: Dino Valenti. Epic
Records/ CBS, Inc., USA. 1968;
[11] MILLS, Jon ‘Mojo’. “Liner Notes”. 2 CDs Quicksilver Messenger Service: Live at The Kabuki Theater, San
Francisco, 31st December 1970. Snapper, UK. 2007. Disponível em
<www.mjckeh.demon.co.uk/jc/q-det1.htm#kt>
Acesso em: 12.Maio.2015;
[12] TAMARKIN, Jeff. “Liner Notes”. 2CDs Quicksilver Messenger Service: Sons Of Mercury, 1968-1975. Rhino
Records, USA. 1991. Booklet 2, p.5
[13] BARTHEL, John. “David Freiberg Interview”. September 4, 1997. http://www.penncen.com/quicksilver/. Disponível em
<http://www.penncen.com/quicksilver/freiberg/interview.html>
Acesso em: 14.Maio.2015;