Quando nos EUA, em 1946, os guerreiros começaram a chegar a casa, cansados das muitas batalhas por aonde lutaram (segundo lhes foi dito) pela liberdade no nosso planeta, para além de uma enorme vontade de prosperarem traziam consigo uma outra bem maior: a de repousar no colo das suas amadas.
«14 milhões de militares da II Guerra Mun-
dial regressaram à vida civil. (...) Meio mi-
lhão obtiveram empréstimos, com garantias
governamentais, para adquirir casas ou pro-
priedades agrícolas ou para se dedicarem a
novas ocupações.» – Harry Truman(1)
E claro, o passo seguinte foi cumprirem o que o “bom livro” recomendava: crescei e multiplicai-vos!
A natalidade, durante o período da segunda guerra mundial (para os EUA: 1941~45), naturalmente, vinha a decrescer mas a partir de 1946 e conforme a prosperidade ia impondo a conformidade, os bebés nasceram e cresceram, e começaram a fazer parte da paisagem suburbana.
«Em 1945, e à medida que os casamentos a-
diados devido à guerra se consumavam e mi-
lhões de jovens casais assentavam, prontos
para constituir família, a América necessita-
va, com mais ou menos urgência, de cinco
milhões de alojamentos adicionais. (...) O
mestre desta arte foi Abraham Levitt que, em
1947, começou a espalhar as suas Levittowns
por todos os estados do leste. (...) Em 1950,
um quarto dos americanos vivia nos subúr-
bios. Dez anos mais tarde, esta proporção
subia para um terço.» – Bill Bryson(2)
Cartaz publicitário da General Electric sobre as Levittowns
Só em 1946 nasceram cerca de mais meio milhão de bebés do que no ano anterior, e no ano a seguir, 1947, esse número aproximou-se do milhão – esta tendência irá prolongar-se até quase meados da década de sessenta, tendo no ano de 1957 o seu pico, com o impressionante número de 4,3 milhões de nascimentos. Anos mais tarde, em 1978, alguém num artigo da revista New Yorker lembrar-se-á de utilizar a expressão baby boom para rotular esse fenómeno(3).
O baby boom...
Algures nos anos cinquenta, essa década em que tudo parecia correr bem nos EUA (tanto assim é que ela ficaria conhecida pela designação de happy days), o número de crianças e jovens com idade inferior a 15 anos, rondava já os 56 milhões.
«Em meados da década de 50, os adolescen-
tes estavam por toda a parte, e era impossí-
vel não dar por eles. (...) Acima de tudo, o
que separava os adolescentes americanos dos
anos 50 das gerações anteriores era o facto
de serem ricos. Em meados da década, como
observou um historiador, “os 16,5 milhões de
adolescentes da América estavam a comprar
cerca de 40 por cento da totalidade dos rádi-
os, discos e máquinas fotográficas, mais de
metade dos bilhetes de cinema, e 9 por cento
dos carros novos. No seu conjunto, represen-
tavam cerca de 10 bilhões de dólares por ano
para a economia do país”.» – Bill Bryson(4)
Bom, mas nem tudo ia assim tão bem pois do longínquo e obscuro leste uma força satânica ameaçava a santidade da pax americana subvertendo povos ordeiros e nações conformadas bem perto da terra prometida e, como se isso não bastasse, nela, ali mesmo ao lado, na vizinhança dos subúrbios brancos da abundância, os negros pareciam não querer perceber o seu lugar e aceitar o seu destino – «Em 1957, umas 60 mil pessoas viviam nos subúrbios em Levittown, na Pensilvânia, e nem uma era negra»(5), o que não admira, pois segundo inquéritos de opinião realizados na altura, «três quartos dos (brancos) do sul e metade dos do norte opunham-se a terem vizinhos negros.»(5)
Quando a 27 de Setembro desse ano, as famílias das Levittown que, como de costume, depois do jantar se sentaram diante da televisão e assistiram à invasão militar de Little Rock, a capital do Arkansas, nessa noite, pelo menos um dos seus três ou quatro filhos com menos de 15 anos, apanhou uma espécie de vírus que se irá incubar ao longo dos anos seguintes, nos Freedom Riders ou no Students for a Democratic Society, acabando por desembocar virulentamente nos Weatherman Underground ou nos hippies.
Cartaz publicitário da 7Up nos anos 50
«(...) “hippie” passou a simbolizar algo de
negativo, detestável, um pouco como “co-
muna” nos anos 50.» – Terry Anderson(6)
Os hippies não eram um movimento político embora não recusassem ter e assumir posições políticas, não tinham líderes embora tivessem demasiadas figuras mediáticas e polémicas, não se recusavam a viver no e para o “sistema” embora muitos vivessem em comunidades agrárias e urbanas, ou fossem simplesmente vagabundos a caminho de um místico e espiritual Oriente, e na sua grande maioria, não gostavam – detestavam mesmo! – serem chamados de hippies: seekers, freaks, heads eram os termos que mais adoptavam entre eles, conforme o que os motivava... quando muito, aceitavam ser conhecidos pela flower generation.
Num excelente artigo publicado pela tradicional revista Time, com o título “Youth: The Hippies”, o seu autor resumia assim a sua filosofia:
«Se houvesse um código hippie, ele deveria
incluir estas directrizes flexíveis:
- Faça o que quiser, aonde quer que tenha
de o fazer e quando o quiser.
- Aliene-se. Abandone a sociedade como a
conhece. Abandone-a totalmente.
- Expluda a mente de cada pessoa normal a
que consiga chegar. Active-os, se não para
a droga, então para a beleza, o amor, a ho-
nestidade, a alegria.»(6)
Na altura, meados de 1967, falava-se na existência de cerca de trezentos mil hippies com outros vinte mil a surgirem cada ano, mas toda esta preocupação com o seu número lhes era indiferente: se a maioria estava certa porque o mundo estava no estado em que estava? perguntavam eles.
O sacerdote dos alucinogénios Timothy Leary, incentivava a “Turn on, tune in, drop out”, o poeta místico e pervertido Allen Ginsberg, esfriava a cena com mantras misteriosos, enquanto o activista palhaço Abbie Hoffman proclamava que “a única maneira de apoiar uma revolução é fazendo a sua” mas, lá bem no fundo, o que realmente era importante não deixava de ser que, como cantava Scott McKenzie, se fossem até San Francisco não se podiam esquecer de por flores no cabelo...
Allen Ginsberg e Timothy Leary
Woodstock e o princípio de tudo
Em Maio de 1969, uma grande parte da principal imprensa lida pelos adolescentes e jovens adultos dos EUA, começou a falar de um grande evento que iria reunir a flower generation num festival de proporções nunca antes vista: Woodstock, seria o nome pelo qual viria a ser imortalizado embora, na altura, se falasse apenas numa Aquarian Exposition. A Rolling Stone, a publicação com maior exposição então na nova cultura adolescente, anunciava na sua edição de 26 de Julho de 1969 o festival...
Uns meses antes, num daqueles encontros fortuitos que a vida proporciona, uma jovem cantora que tinha acabado de lançar o seu primeiro trabalho, Born to Be, e que vinha a fazer algum furor na zona de Nova Iorque através das estações locais de FM, com um tema cujo título, Beautiful People, é por si só bastante elucidativo, encontrou no prédio aonde se localizavam os escritórios do seu produtor, um dos organizadores do Woodstock, um tipo de cabelos encaracolados que detestava andar calçado, Michael Lang, e ofereceu-se para actuar no tal festival, oferta a que ele, na sua habitual atitude inconsequente respondeu com um desleixado claro, porque não? – ela, na altura, era ainda apenas a Melanie.
No primeiro dia do festival, uma sexta-feira 15 de Agosto de 1969, às 10:50, e depois de ter tido de cantar para a segurança afecta ao palco por nunca lhe ter sido entregue o habitual cartão de acesso ao palco(7), ela enfrentou a multidão que entretanto transformara o festival no maior acontecimento de sempre da cultura adolescente. A sua actuação, logo a seguir à do grande mestre indiano de sitar Ravi Shankar e por gentileza de Joan Baez, que lhe cedeu a sua vez, terá demorado cerca de meia hora e embora nenhum dos muitos críticos musicais a que assistiram aos três dias do festival se tenha resolvido a fazer-lhe qualquer referência, ela jamais esqueceu a experiência:
«Foi mágico. Eu nunca tinha actuado em
frente de tantas pessoas na minha vida. (…)
Estava aterrorizada (…). Comecei a andar
por aquela ponte para o palco, e então a-
bandonei o meu corpo (…). Vi-me a ir pa-
ra o palco, a sentar-me e a cantar algumas
linhas. E quando senti que era seguro, re-
gressei. Começou a chover um pouco antes
de eu começar. (…) e o apresentador disse
que se acendessem velas, elas ajudariam a
manter a chuva longe. Quando terminei a
minha actuação, a encosta inteira era uma
massa de pequenas luzes piscando. (…)
Woodstock foi uma afirmação de que éra-
mos parte um do outro, de que havia mais
para viver do que fazer o que a nossa mãe e
pai nos disseram e de que certamente nun-
ca nos deveríamos ter envolvido na Guer-
ra do Vietname.» – Melanie Safka(8)
No fim da primeira semana de Março de 1970, a Buddah Records disponibiliza ao público o novo single de Melanie, Lay Down (Candles In The Rain), com Candles In The Rain no lado B, gravado em finais de 1969, respectivamente, no Catero Sound de São Francisco, e no Allegro Studios de Nova Iorque, cujo tema tinha sido inspirado na sua actuação no Woodstock e que, em pouco tempo, se torna num sucesso comercial, catapultando a cantora para o estrelato.
Melanie
No lado A, Melanie conta com a colaboração de um dos então mais populares grupos de gospel, os Edwin Hawkins Singers, que enchem a canção com uma carga emocional poderosa, fazendo um contraponto perfeito com a voz caracteristicamente trémula e estridente da cantora e a associam, de algum modo, ao movimento pelos direitos cívicos; beneficiando de um excelente trabalho de produção a cargo de Peter Schekeryk (aonde destaco o persistente som “étnico” das congas de Rico Reyes), Lay Down acabaria por se tornar numa das associações mais emblemáticas ao dito festival e à subcultura hippie.
We were so close, there was no room
We bled inside each others wounds
We all had caught the same disease
And we all sang the songs of peace
Some came to sing, some came to pray
Some came to keep the dark away
Some came to keep the dark away
So, raise, raise the candles high
Cause if you don’t we could stay
Black against the sky
Oh oh raise them higher again
And if you do we could stay dry against the rain
Pouco tempo depois, em Abril, viria a sair nos EUA o álbum Candles In The Rain que tem nos dois temas do single, embora por ordem inversa mas natural, as faixas de abertura. Outros oito temas, seis originais e duas versões de canções de outros intérpretes, compõem o resto do álbum que foi gravado entre Londres e Nova Iorque, sob a direcção e com a (uma vez mais) excelente produção de Peter Schekeryk.
Capa do Candles In The Rain
A escolha dos temas não originais recaiu sobre Carolina In My Mind, de James Taylor, e Ruby Tuesday, dos “glimmer twins” Richards e Jagger. Em ambos os casos, em termos estritamente sonoros, é notório o esforço de, mesmo sem os recusar como ponto de partida, se distanciar o mais possível dos originais e, no caso de Ruby Tuesday, ele viria mesmo a ser escolhido para tema principal de um single destinado ao mercado britânico, em Agosto desse ano. Quanto aos originais, os dois últimos do lado um, Citiest People e What Have They Done To My Song Ma são excelentes, sendo que este último, um comentário sobre as pressões da indústria discográfica com um fundo musical a fazer-nos lembrar a música ligeira francesa, impressão que às tantas é reforçada pela introdução da tradução para francês do seu poema principal, se tornou num verdadeiro clássico do seu reportório.
Look what they done to my song, ma
Look what they done to my song
Well it’s the only thing
That I could do half right
And it’s turning out all wrong, ma
Look what they done to my song
A abrir o lado dois está Alexander Beetle, uma faixa desconcertante de música infantil – para esquecer. The Good Guys, a canção seguinte, revela-se interessante, vagamente clássica e servida por uma letra “militante”…
But if we keep on trying
Though our purpose isn’t clear
We just may move the universe
We’ll learn to really care
Eventually the whole facade
Becomes more than a whim
By starting to build on the outside
We’re gonna fill up the walls within
By starting to build on the outside
We’ll fill up the wallls within
Eventually the whole facade
Becomes more than a whim
And by starting to build on the outside
We’re gonna fill up the walls
We’re gonna fill up the walls within
Se em Lovin’ Baby Girl a personagem cantada pode fazer parte de um universo quase tão inocente e ingénuo quanto o da de Alexander Beetle, não deixa de ser – ao lado de Ruby Tuesday, claro! – a canção mais perversa do álbum, não só pelo conteúdo da sua letra mas também pela abordagem subversiva/experimental dada ao tradicionalismo desse tipo de música. O último tema, Leftover Wine, é demasiado em tudo... e isso, nem sempre significa algo de bom, como é o caso.
O álbum foi um sucesso em ambos os lados do Atlântico, #17 nas tabelas dos EUA e #5 nas do Reino Unido, e até um pouco mais longe, na Austrália, um #2. A partir dele, Melanie passou a ser a “namorada hippie”... qualquer festival mais ou menos conotado com o movimento, só era Festival (isso, com F graúdo!) se ela estivesse no cartaz: foi assim com o outro dos grandes e míticos festivais dessa época, o da ilha de Wight, em Agosto de 1970, e com o Glastonbury Fayre, em Junho do ano seguinte.
Melanie a actuar
Mas a sua ligação ao movimento era descoberta também em muitas outras pequenas coisas como, por exemplo, o facto de ter sido a única estrela da cena rock, de cerca de duas dezenas agendadas para um festival em Powder Ridge, em finais de Julho de 1970, a comparecer e a actuar perante algumas dezenas de milhar de hippies que se concentraram no local, apesar de o mesmo ter sido cancelado, por ordem judicial, a poucos dias da data do seu início, ou de mesmo nunca ter abandonado as flores no cabelo e de, numa das fotografias publicadas no álbum The Good Book, aparecer abraçada a uma vaca, quando a maioria dos “rostos” do movimento e alguns dos seus pseudo porta-vozes pareciam querer abandonar o barco.
«Era como se ela se estivesse a virar para
as ofertas de flores e amor de São Francis-
co, quando a maioria das outras pessoas
se estavam a afastar disso para uma outra
coisa a qualquer.» – Peter McCabe(9)
Capa do Leftover Wine
Ainda no ano de 1970, Melanie publicou o inevitável álbum ao vivo, Leftover Wine, gravado num concerto dado Carnegie Hall de Nova Iorque, e lançado nos EUA em Setembro, com um sucesso pouco condizente com a sua popularidade, limitando-se a um #33 nos EUA e a um #22 no Reino Unido, aonde tinha sido disponibilizado em Dezembro. No final do disco, aparece a canção Peace Will Come (According To Plan), que já tinha sido publicada como lado A de um single, aonde fazia par com um tema do seu primeiro trabalho, Close To It All, e que atingira o Top20 da Cashbox, nos EUA. O tema abre com o típico som de uma daquelas caixas de música móveis impulsionadas por manivela, e conforme se vai desenvolvendo surge uma marcha exótica e muito pessoal que rapidamente foi transformada num hino pacifista – «Era a minha canção pessoal de paz, (...) sobre a minha ligação com a Terra (...), eu não esperava que as pessoas a fossem cantar nas manifestações pela paz.»(10).
For sometimes when we have reached the end
With the velvet hill in the small of my backs
And our hands are clutching the sand
Will our blood become a part of the river
All of the rivers are givers to the ocean
According to plan
According to man
There’s a chance
Peace will come in your life
Please buy one
There’s a chance
Peace will come in your life
Please buy one.
Recuando no tempo...
Para trás ficavam dois álbuns praticamente ignorados, Born To Be, publicado em Novembro de 1968, e Melanie, saído em Outubro do ano seguinte, e ainda lá mais para trás ficava um (mais um!) encontro fortuito em que, quando tentava uma audição para um lugar num musical, a levou por engano a uma companhia de produtores e, através dela, a ligar-se ao tal Peter Schekeryk já mencionado como seu produtor (embora então, sem qualquer prova dada nessa área), que viria a tornar-se também no seu companheiro.(11)
Capa do Born To Be
Born To Be, o álbum que inaugura a sua carreira na Buddah Records, foi gravado depois de uma breve passagem pela Columbia Records, etiqueta para quem grava dois singles que não foram suficientemente convincentes para a companhia assinar um contrato com ela. Do seu primeiro trabalho de longa duração, confesso ser um trabalho muito insosso aonde o ponto mais interessante é a sua versão do clássico de Bob Dylan, Mr. Tambourine Man, e mais pelo trabalho de produção. Outros temas que realçaria: Bo Bo’s Party e o que encerra o lado um, Momma Momma. No lado dois, apenas Close To It All. Apesar desses quatro temas, Animal Crackers e Christopher Robin (Is Saying His Prayers) destroem por completo qualquer boa vontade para com o álbum…
«Quando ela (...) se concentra em ser Mela-
nie, ela pode realmente chegar até si. Como
em “Momma, Momma”, por exemplo, ou
em “Bo Bo’s Party”. A sua voz, as suas le-
tras, a sua guitarra, tudo contribui para ela
produzir uma unidade compacta de acção e
reacção.» – Anne Marie Micklo(12)
Melanie, que no Reino Unido recebeu o título de Affectionately Melanie, saído já no período de transição entre Woodstock e Lay Down, foi gravado em várias cidades conforme o tempo livre lhe permitia fazê-lo: em Paris, nos CBE Studios, grava Johnny Boy, em Londres, nos Wessex, grava Tuning My Guitar, Deep Down Low, e For My Father, e em Los Angeles, no Sound Recording, a sua versão de Soul Sister Annie escrita por Tommy Kaye – as restantes canções foram registadas em Nova Iorque, nos Allegro Sound Studios. O álbum demonstra um certo amadurecimento por parte das propostas apresentadas com uma evidente segurança na composição, bem como um novo empenho por parte da sua etiqueta, ao apostar em arranjos mais cuidados e sólidos, mas o resultado, se exceptuarmos o evidente sucesso de Beautiful People, não foi muito diferente do conseguido com o seu antecessor. Pessoalmente, no lado um, gosto de Soul Sister Annie e de Uptown Down. No lado dois, evidentemente, do seu tema de abertura, Beautiful People, e com algum esforço Baby Guitar.
«Ela tem a capacidade de, numa sala, fazer
trinta pessoas sentirem-se como indivíduos
para quem ela está a cantar para eles e ape-
nas só para eles, e ela transmite a emoção
das suas canções a um tal grau, provavel
mente, mais do que qualquer outro cantor
no mundo de hoje. É essa capacidade rara
que a levou tão longe e fez com que pessoas
como Bill Graham, que controla o auditório
Filmore West em San Francisco, lhe ofere-
cesse um concerto, quando ela não tem tido
sucesso real com os seus discos.»(13)
Beautiful People é uma canção importante na sua carreira como “namorada hippie” porque nela, pela primeira vez, ela aborda o tema pelo prisma de reconhecer a sua existência (Beautiful people/ You live in the same world as I do/ But somehow I never noticed/ You before today) e do que tem em comum com eles (We share the same back door, ou mais à frente: We’ve got so much in common/ I go the same direction that you), afirmando-se disposta à comunhão com eles (If I weren’t afraid you’d laugh at me/ I would run and take all your hands/ And I’d gather everyone together for a day/ And when we gather’d/ I’ll pass buttons out that say/ Beautiful people/ Then you’d never have to be alone, ou You look like friends of mine/ And it’s about time/ That someone said it here and now/ I make a vow that some time, somehow/ I’ll have a meeting/ Invite ev’ryone you know). Foi como que uma primeira piscadela de olho que, para a maioria dos hippies, viria a ser correspondida logo após o Woodstock.
«Eu estava numa festa para a imprensa na
Califórnia, nos primeiros tempos, quando eu
estava a começar, e estava lá um tipo, na
verdade, era um dos tipos do Firesign Thea-
o seu crachá e perguntei “Quem é ele?” e e-
queno, e esse homem sorria assim (imitando
a atitude de oração). (...) para mim, era ape-
nas fascinante usar uma coisa tão pequena e
alegre, então, no final da festa, ele deu-ma e
passei a usá-la sempre.» – Melanie Safka(14)
Melanie em palco
«O concerto de sexta à noite foi na Univer-
sidade de Rhode Island, em Kingston. (...)
No fim, os miúdos encheram o palco para
os encores. Um miúdo e uma miúda ani-
nharam-se em frente de Melanie abraçados.
Os seus rostos eram inocentes, rostos de um
fresco sereno. Crianças de Botticelli. Ilumi-
nados por detrás no centro das atenções, ca-
da um parecia ter um halo. Melanie cantou
a paz, e os seus olhos viram-na a chegar.
Quando a música terminou e todos os ou-
tros batiam palmas alegremente, eles olha-
ram para a cantora em adoração pedrada.
Enquanto os outros se levantavam para sair,
eles sentaram-se paralisados.» – Margaret
English(15)
«Eu não os vou deixar mudar as coisas que
amo, aquilo que sou. Eu quero ter a possibi-
lidade de me sentar de pernas cruzadas no
chão, comer o meu queijo e pão de centeio,
rir alto, e tocar a minha guitarra e cantar!»
– Melanie Safka(16)
O sucesso
Em Fevereiro de 1971, nos EUA, sai aquele que viria a ser o seu último disco para a Buddah Records: The Good Book. O Reino Unido teria ainda de esperar três meses para o ter à venda. Considerado por muitos dos seus irredutíveis críticos como o seu primeiro trabalho adulto, o álbum é, na minha opinião, mais equilibrado, mais homogéneo mas, talvez por isso mesmo, lhe falte um tema forte, algo a que The Nickel Song, a canção escolhida para título do single, não consegue corresponder.
Sabendo já da criação de uma etiqueta própria, a Neighborhood Records, por parte da cantora e do seu marido e da intenção de ambos abandonarem a Buddah Records, a maior parte das críticas feitas a este álbum de Melanie não deixaram de o encarar por esse prisma, com os mais simpáticos a descobrirem nas suas letras pistas da “guerra” entre ela e a etiqueta, e os mais cínicos a sugerirem, a partir dessas pistas, que afinal a “namorada hippie” não passava de uma calculista salivando pelo lucro capitalista.
Eu, se tivesse sido o produtor, no lado um, teria substituído The Saddest Thing por You Can Go Fishin’, passando-a para o início do lado dois e nunca teria utilizado Birthday Of The Sun tal como ela foi recolhida em Woodstock – a canção, em si, até é interessante mas merecia um tratamento mais cuidado do que teve. Se a intenção fosse colocá-la como simples curiosidade, então deveria ter sido relegada para o final do disco.
Good Book é um tanto ou quanto irónica, apesar do seu ritmo alegre, e reflete a atitude da autora, enquanto estrela de rock, perante a cultura adolescente...
Poor little hairy kids out on their own
They run to the festival to show that
They were one
They’ve fallen in love with all human kind
So tell them you love them
So they don’t change their mind
Babe Rainbow tem aquela áurea de mistério, de que ela estava a falar de um de “nós... mas hmm, se calhar até não”, e depois é aquela música de feira entrecortando a melodia das teclas que impõem uma certa melancolia. Sign On The Window, é uma interpretação sem qualquer compromisso de uma das canções menos conhecidas de Bob Dylan – quem sabe o que ele pretendia transmitir com as suas palavras? Eu nunca as percebi... e esta versão da Melanie nada adianta nesse aspecto. You Can Go fishin’ é um country-blues interessante que se ouve bem e, The Nickel Song, mais uma pequena diatribe contra a indústria discográfica, é sem dúvida alguma, o melhor tema do álbum para o single.
Well, I don't mind that they're lucky
But it seems that they always win
And gamblin' is illegal in the state of mind I'm in
And if I had a nickel for each time that
I've been put on
I would be their nickel man
And I'd sing a little song
They're only putting in a nickel and
They do a dollar song
Isn’t It A Pity, aparentemente, é uma gaiatice mas, quanto a mim, é dos temas mais pessoais deste seu álbum. A abrir o lado dois, teríamos essa depressão feita canção que é The Saddest Thing e que estará mais de acordo com o ambiente deste lado do disco, recomendado apenas para quem não se consegue levantar para avançar para a próxima faixa...
And the hardest thing
Under the sun above
Is to say goodbye
To the ones you love
Now, I will not weep
Nor make a scene
I'm gonna say,
Thank you life for having been
And the loudest cry
Under the sun above
Is the silent goodbye
From the ones you love
My Father é um original de Judy Collins, e Chords Of Fame, um de Phil Ochs. Confesso gostar da versão que ela dá a este último e claro, pelo tema, está mais próximo dela do que a anterior, e The Prize que começa fazendo-me lembrar Nick Drake, algures conforme avança, perde-se numa monotonia sem rumo...
O álbum viria a ter uma péssima recepção nos EUA aonde apenas chegou ao #80 das tabelas embora tenha conseguido uma posição muito boa, um #9, no Reino Unido.
Antes de encerrar o ano com outro álbum, Melanie para além de se ver nomeada como a cantora do ano em várias publicações especializadas de música, aceita um convite para actuar na Assembleia Geral das Nações Unidas, o que rapidamente passa a uma relação de colaboração com a UNICEF que culminaria em 1972 numa digressão por dez países para recolha de fundos para essa organização.
«Eu sempre senti que a UNICEF era uma das
poucas instituições de caridade que não enga-
nava as pessoas. (...) Quando, há cerca de no-
ve meses, eles me pediram pela primeira vez
para fazer a digressão, eu senti que necessita-
va de fazer algo para empregar o meu tempo.
Suponho que me fez sentir que o que estava a
fazer como artista tinha alguma significado.»
– Melanie Safka(17)
Gather Me é o seu primeiro trabalho para a Neighborhood Records e, pela primeira vez, ela dispõe da liberdade e do tempo que sempre reclamara. Claro, a antiga editora, a Buddah Records, não baixou os braços e aproveitou não só para lançar material inédito e de baixa qualidade que mantinha em arquivo (Garden In The City), como para disponibilizar a inevitável colectânea (The Four Sides Of Melanie) em plena “concorrência desleal”. O álbum em si, é mais um passo no gradual amadurecimento da autora, o que já era perceptível no seu anterior trabalho, embora isso não tivesse implicado uma alteração substancial da posição negativa da grande maioria dos críticos musicais. Os temas, mais pessoais do que nunca, apresentam uma certa serenidade madura e o trabalho quer da produção, (como desde sempre) a cargo do marido, Peter Schekeryk, quer dos arranjos, entregues a Roger Kellaway, contribuem definitivamente para uma diferença positiva.
Capa do Gather Me
No lado um, destacam-se os dois principais temas do disco: Brand New Key e Ring The Living Bell, que quase se poderia dizer reflectem imagens das facetas opostas da compositora: a primeira, é uma canção que, segundo ela própria, foi escrita em quinze minutos e se apresenta recheada de adolescência e insinuações quase brejeiras (I got a brand new pair of roller skates/ You got a brand new key/ I think that we should get together and try them out, to see) que lhe valeriam o estatuto de banida em muitas estações de rádio dos EUA, com um ritmo alegre e cheio de referências à música popular dos anos quarenta e cinquenta. Lançada em single (com Some Say (I Got Devil) no lado B), chegaria ao #1 da Billboard Hot 100, e a #4 das Charts britânicas. A segunda é toda ela espiritual, com uma letra suficientemente mística e uns arranjos com sabor a gospel o que por sua vez, reforça o seu lado “sacro” – também lançada em single, com Railroad no outro lado, não passaria do #31 nas tabelas da Billboard.
I'm not a magic lady
But I want to sing to help the light
Descend on the earth today
Because it's gonna get dark tonight
Sing for light, ah
Sing for living light
Still feel weak but God
I want to give and shine the living light
O único tema para esquecer neste lado do disco é, quanto a mim, Someday I'll Be A Farmer, demasiado infantil e o seu arranjo musical, variando entre a música country e a infantil, não ajudam muito. A canção de abertura, Little Bit Of Me, e Steppin', embora ambas tristes são-no de modos diferentes – ou como ela diz algures na última: I'm glad that I'm laughing/ It's a good way to die. Ring Around The Moon funciona como uma passagem indiferente entre as duas já mencionadas melhores composições do disco, com o seu ambiente vagamente vitoriano. No lado dois, Railroad, sobre a “miserável desgraçada vida” de um rock’n’roller, ouve-se bem, tendo inclusive algumas passagens muito interessantes. Kansas, sem grandes pretensões, também se ouve bem e sem grandes compromissos. Some Say (I Got Devil) e Center Of The Circle são o ponto alto deste lado do disco, quer a nível da letra, quer a nível musical. What Wondrous Love, que a compositora diz ter sido criada a partir de um hino baptista do Sul dos EUA mas do qual deixou “de lado a parte sobre Cristo”, é um pouco monótona – aguenta-se na esperança de que algo de melhor venha a seguir mas Baby Day não cumpre essa esperança, é apenas mais uma das suas muitas canções para serem cantadas em torno da fogueira numa noite de campismo, e para encerrar o álbum, Tell Me Why, carregada de melancolia... Sem dúvida alguma, o melhor álbum de Melanie e que culmina em cheio, o seu melhor período de sempre.
Melanie, as flores, e a guitarra
1972 viria a ser o ano da sua consagração em termos de grande público mas sempre perseguida de perto pela maioria dos críticos musicais que ora a ignoravam – a Rolling Stone, por exemplo, não lhe há-de dedicar uma única linha no período entre Abril de 1971 e Agosto de 1974 – ora a menosprezavam – uma linha típica do que escreviam sobre ela: “Melanie So Sweet She Made Me Sick”(18). Antes do ano terminar, sai um novo álbum com temas inéditos sob o título de Stoneground Words que, o mínimo que se pode dizer dele, é que se nota nele uma tentativa de enriquecimento sonoro mas que no seu conjunto, não consegue alcançar a força dos dois álbuns anteriores. Ainda mais adulto do que o anterior e com propostas musicais que acabam por se tornar banais, como é o caso do tema de abertura, Together Alone, ou do de encerramento, Here I Am. Summer Weaving ouve-se com algum entusiasmo, e a cover do original de Pete Seeger, My Rainbow Race, é talvez uma das únicas músicas em todo o álbum que ainda nos consegue agarrar a sério, um pouco como Do You Believe?; com I Am Not A Poet (Night Song), volta-se a ficar com aquela sensação de que este trabalho nada de novo acrescenta ao que conhecemos da cantora e a meio do tema-título, Stoneground Words, a paciência esgota-se de vez. Song Of The South recuperar a esperança – é bom saber que Melanie gostava dos Tyrannosauros Rex, fase acústica! – mas o álbum fica por aqui. De certo modo, este trabalho é uma desilusão.
Capa do Stoneground Words
A partir daqui – li algures! – ela foi afastando-se gradualmente de cena... para ter filhos e se dedicar à técnica das fraldas, numa espécie de casarão aonde já viviam, ela e o Peter dela, entre cães, gatos, coelhos e cabras...
A casa de Melanie e do Peter
Ao longo destas últimas três décadas tenho lido algumas notícias sobre ela, não muita coisa, mas confesso que é com um misto de enorme alegria e maior nostalgia, que as aceito: aqui, um prémio Emmy por uma canção, acolá, a descoberta de um novo guru, e sempre sobre a sua presença em mais uma das quaisquer celebrações dos originais e mesmo dos “do espirito”, dos festivais de Woodstock ou da ilha de Wight, sim, porque ela não se conseguiu livrar de continuar a ser a “namorada hippie”.
«Eu nunca fui uma flower child, eu a-
chava tudo isso um pouco demais.
Embora a ideia estivesse lá, era muito
pesada, mesmo que fosse uma coisa
melhor do que o ambiente cínico de
hoje. (…) A melhor coisa sobre o pe-
ríodo das flores foram as pessoas que
apareceram com ele. Houve pessoas
que tiraram alguma coisa dele, e tor-
naram-se em pessoas mais bondo-
sas, atenciosas, interessadas e gentis.»
– Melanie Safka(19)
«Mas eu não sou uma hippie, nunca o fui.
Eu não gosto da palavra – soa tão leve e i-
neficaz.» – Melanie Safka(7)
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(1) TRUMAN, Harry S. “Annual Message to the Congress on the State of the Union ”, January 6, 1947. The American Presidency Project (americanpresidency.org), John Woolley and Gerhard Peters, University of California , Santa Barbara ;
(2) BRYSON, Bill. “Bem-vindos à Era Espacial: os Anos 50 e Depois”. Made in America, 1994. Tradução de Daniela Carvalhal Garcia. Lisboa: Quetzal Editores. 2001. p.508;
(3) The Economist, December 21, 1991. p.72;
(4) BRYSON, Bill. “Bem-vindos à Era Espacial: os Anos 50 e Depois”. Made in America, 1994. Tradução de Daniela Carvalhal Garcia. Lisboa: Quetzal Editores. 2001. pp.499/501);
(5) ANDERSON, Terry H. “Seeds of Discontent”. The Sixties. Longman. 1999. pp.13/14;
(6) “Youth: The Hippies”. Time Magazine, July 7, 1967. Volume 90, No. 1. p.20, citado em MILLER, Timothy. “Chapter 1. Introduction”. The Hippies And American Values. Knoxville : The University Tennessee Press. 1991. p.5;
(7) BRIGHT, Spencer. “Forty far-out facts you never knew about Woodstock ”. Mail Online. 8th August 2009;
(8) SAFKA, Melanie. “Woodstock Remembered”. Rolling Stone, No. 559. August 24, 1989. p.79;
(9) MCCABE, Peter. “Melanie Is In A Kind Of A Lull”. Rolling Stone, No. 79. April 1, 1971. p.24;
(10) OKAMOTO, David. “Melanie”. Beautiful People: The Greatest Hits of Melanie. CD Linear Notes. Buddah Records. 1999;
(11) MORTON, Mandy. “Melanie Safka. An Eclectic Light Show Special. Part 2”. BBC Radio Cambrigdeshire. June 2009;
(12) MICKLO, Anne Marie. “Records. Born To Be”. Rolling Stone, No. 29. March 15, 1969. p.29;
(13) “Melanie Biography”. Buddah Records (UK ). 1970;
(14) “The Melanie Interview”. Right On television show. 1970;
(15) ENGLISH, Margaret. “Melanie Is Love”. Look, January 12, 1971;
(16) PACE. “Bubbling Melanie!” New Musical Express, October 31st, 1970;
(17) VALENTINE, Penny. “Overnight Maturity For Melanie”. Sounds, October 1972;
(18) Título de um artigo escrito por Jim Smith, para a edição de 16 de Outubro de 1971, do New Musical Express, sobre um concerto da cantora no Toronto Massey Hall;
(19) HOLLINGWORTH, Roy. “Melanie Interview”. Melody Maker. March 27, 1971.
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