Era no anexo à vivenda aonde a família vivia, transformado em escritório, que ele se refugiava, erguendo um mundo que, hoje sei, era só seu.
Era lá que ele desenhava as janelas alongadas e as varandas fundas da sua casa perfeita ou a caricatura cheia de carinho de algum dos seus artistas cómicos preferidos, sempre com um traço próprio do artista que nunca conseguiu ser. Foi lá que, pela primeira vez, descobri que havia desenhos que eram proibidos, como o da célebre imagem do Che que ele se recusou a desenhar apesar do modelo que lhe estendi ser uma foto publicada numa das edições do Século Ilustrado, muito provavelmente sobre o verão quente de 1968.
Era também lá que ele preenchia as quadriculadas folhas amarelo-pálidas com números, em colunas de Débito e Crédito, que me pareciam verdadeiros quebra-cabeças em código, porque embora fosse contabilista nunca o foi por opção, antes porque era uma das poucas saídas para os “brancos de segunda” na Angola colonial, e foi também lá que, pela primeira vez, tive de ouvir as experiências que ele tinha registado ao vivo num mini-gravador de bobines, desses de Las Palmas, comprado na última das viagens de barco a que nos sujeitávamos a cada licença graciosa... sim, lembro-me de ter sido sujeito ao teste de ouvir Frank Sinatra seguido por um tal de Tom Jones, de sorrateiramente bater o pé com Suspicious Minds do Elvis Presley, espantado por ele a ter gravado e de, por fim, ter de ouvir uma música que nunca ouvira antes mas que me agarrou a atenção desde a sua entrada, quando as gaivotas surgem a chilrear o que me parecia angústias sob um painel de ondas de um mar rebuliço. Confesso que quando as teclas do piano Steinway entraram clássicas, torci o nariz – dali não podia vir grande coisa! – mas eis que uma voz, ao mesmo tempo poderosa e dramática, soletrando imagens como “All hands on deck/ We've run a float/ I heard the Captain cry”, entrou em cena (0:25), a canção passou a ser um filme: lá atrás, sons misteriosos invadiam a narração (0:28) e uma orquestra de cordas, tomavam conta da aventura (0:40) e quando então a bateria entra violenta (1:02), como que a anunciar um desfecho dramático, já eu estava completamente seduzido – o resto foi a continuação da aventura de flibusteiros e outros aventureiros, por mares cheios de perigos mais vis e traiçoeiros do que eles, esses muitos errol flyns à solta...
«“A Salty Dog” abre com violinos e gaivotas mis-
teriosas (e ameaça, por um momento, tornar-se
um pouco exuberante demais). Na parte em que as
palavras são: “How many moons and many Junes
have passed since we made love?” (a minha linha
favorita no álbum) a bateria entra forte, as cordas
crescem poderosamente e a voz de Brooker engros-
sa excitante (deixando-vos tão fora de vocês que
nem hão-de reparar nos desajeitados violinos que
retomam um novo ciclo, até à terceira ou quarta
audição).» – John Mendelsohn[01]
“Salty dog”, cuja tradução mais aproximada para português será a de “lobo do mar”, é o título do lado A do quarto single do grupo Procol Harum, posto à venda em Maio de 1969, uns quantos dias antes do álbum com o mesmo título, do qual é a faixa de abertura, ter sido disponibilizado. Como todos os grandes sucessos do grupo, a sua letra foi composta por Keith Reid que embora não tocasse qualquer instrumento no grupo, se encarregava das cada vez mais determinantes palavras dos seus temas, a partir de uma frase (“Great God Skip we done run aground”) que viu rabiscada numa parede de um camarim em Cleveland, Ohio, e que inspiraria o verso inicial “we’ve run a float”, enquanto a componente musical é da responsabilidade de Gary Brooker, principal vocalista e único pianista – entre outras coisas! – e também o seu mais prolífero compositor.
Procol Harum com Keith Reid
Registada durante a segunda sessão de gravações do álbum, iniciada em meados de Janeiro desse ano nos famosos estúdios da EMI, na Abbey Road, que tinham adquirido recentemente aparelhagem que permitia utilizar oito pistas diferentes e, tendo como engenheiro de serviço, o não menos famoso Ken Scott que, terá sido uma preciosa contribuição para o estreante produtor (e também organista entre outras coisas!!!) do grupo, Matthew Fisher.
«No início do verão de 1968 fizemos uma digres-
são pela Alemanha com os Bee Gees, que eram
acompanhados por uma orquestra. Lembro-me de
que quem tocava viola deu algumas indicações ao
Gary enquanto ele escrevia A Salty Dog. Ela tor-
nou-se na sua obra-prima. Penso que é O Mundo
a Seus Pés dos Procol!» – Matthew Fisher[02]
«A minha única recordação da sessão de violinos
é a de Gary a dirigir. A orquestra estava muito es-
pantada por ter um rock'n'roller cabeludo a con-
duzi-la.» – Ken Scott[02]
«A minha memória estafada dessas sessões é a da
faixa título, para a qual o Gary Brooker escreveu
a música e a orquestração. Ela resultou realmen-
te bem. É a sua obra-prima.» – Robin Trower[02]
«“A Salty Dog” tinha um arranjo de cordas clás-
sico – não um arranjo pop.» – Gary Brooker[03]
A primeira vez que A Salty Dog foi tocada em público foi no Festival de Palm Springs, na Califórnia, EUA, no dia 6 de Abril de 1969. Nas tabelas britânicas, o single, com Long Gone Geek no lado B, atingiria a sua posição mais alta, o #44, a 21 de Junho, enquanto nos EUA acabaria por se tornar num tema com algum impacto nos DJs das estações de FM, que contribuíram assim para o crescente sucesso que o grupo conseguiria no outro lado do Atlântico.
Capa do single lançado em Inglaterra
Capa dos singles lançados na Alemanha e no Japão
«Os nossos dois primeiros álbuns tinham canções com
influência clássica, como In Held ’T was I e Salty Dog.
Fomos convidados para o Festival de Stratford, para
fazermos uns arranjos especiais para um coro e or-
questra de câmara.» – Gary Brooker[04]
«No verão de 1969, quando lançamos A Salty Dog e
Dave Knight e Matthew Fisher ainda estavam na ban-
da, fomos convidados para tocar com uma orquestra
no Festival de Stratford no Ontário, Canadá. Os or-
ganizadores inspiraram-se na nossa gravação de A
Salty Dog (…).» – Gary Brooker[05]
O entusiasmo de Gary Brooker viria a encontrar eco no manager assistente da Orquestra Sinfónica de Edmonton, Bob Hunka, que supostamente procurava um novo grupo rock para voltar a repetir a iniciativa de juntar os dois géneros em palco (ele já o tinha feito com os canadianos Lighthouse). Como terá chegado ao grupo, existem várias versões mas a verdade é que num primeiro contacto, os Procol Harum terão recusado o desafio: Robin Trower, o guitarrista da banda, depois da anterior experiência sinfónica recusava-se a participar numa outra. No verão de 1971, Trower abandona o grupo e Hunka volta a insistir no convite ao qual é de imediato aceite por Brooker.
«Alguém da Edmonton Symphony estava lá, e obvia-
mente gostou do espectáculo.» – Gary Brooker[04]
«(...) Mas Trower não queria tocar novamente com
uma orquestra. Talvez fosse demasiado limitativo e
ele não conseguisse ter o seu som, o que é suficien-
temente justo. Mas logo que Trower deixou os Pro-
col Harum e a orquestra disse “Venham e toquem”,
nós dissemos “Ya, tudo bem.”» – Gary Brooker[05])
O concerto acabaria por ser agendado para 18 de Novembro de 1971. Para os interessados no “diário” do concerto, incluindo os eternos pequenos problemas em torno do mesmo, há uma série de páginas disponíveis sobre o mesmo, aqui, aqui e aqui.
Concretamente, o concerto viria a ser um sucesso nunca antes conseguido quer pela Orquestra Sinfónica de Edmonton, quer pelos Cantores da Da Camera, e mesmo pelo próprio grupo e, claro, tudo isso vinha a favor da aposta feita entre os Procol Harum e a sua editora, de gravarem o concerto que, na altura, pareceu a muita da sua gente de megalómana.
«O espectáculo inteiro recebeu uma ovação de pé
tão calorosa que os três grupos (a Orquestra Sin-
fónica de Edmonton, os Procol Harum e os Can-
tores da Da Camera) foram seleccionados para
tocar quase o programa inteiro, uma segunda vez.»
– Jon Faulds[06]
Para a história fica um disco que viria a ser disponibilizado em Abril de 1972, com o pomposo nome de Live In Concert with the Edmonton Symphony Orchestra e cuja importância é, ainda hoje, indiscutível no que toca a tentativas de registo de fusão entre as interpretações do género clássico e as do popular.
«(…) A Salty Dog, uma vez que foi lançada co-
mo single, deveria de facto enquanto single, ter
conseguido mais do que conseguiu; infelizmen-
te sabendo que demorava mais do que dois mi-
nutos e meio e que não tinha propriamente um
ritmo brilhante, muitos dos meus colegas não a
queriam passar porque sentiam que mais do que
dois minutos e meio sem um gracejo irónico de-
les, iria tornar o mundo num lugar ainda mais
triste.» – John Peel[07]
«A melodia é bonita, o arranjo brilhante e o
desempenho perfeito. Escrita por Keith Reid
e Gary Brooker e cantado por Gary com cada
ponta de sentimento que ele conseguiu reunir,
é o tipo de contribuição para a música pop de
que ela se pode justamente orgulhar. Tal co-
mo as cordas passam de clímax em clímax,
cada ouvinte com o mínimo de sensibilidade
será tocado.» – Chris Welch[08]
Outros dados...
Os restantes membros dos Procol Harum que aparecem em A Salty Dog: Robin Trower na guitarra, Dave Knights no baixo, e Barrie Wilson na bateria,
e a letra completa:
A Salty Dog
(Keith Reid/Gary Brooker)
All hands on deck, we've run a float,
I heard the Captain cry.
Explore the ship, replace the cook,
Let no one leave alive.
Across the straits, around the horn,
How far can sailors fly?
A twisted path, our tortured course,
And no one left alive.
We sailed for parts unknown to man,
Where ships come home to die.
No lofty peak, nor fortress bold,
Could match our captain's eye.
Upon the seventh seasick day,
We made our port of call.
A sand so white, and sea so blue,
No mortal place at all.
We fired the guns, and burned the mast,
And rowed from ship to shore.
The captain cried, we sailors wept,
Our tears were tears of joy!
Now many moons and many Junes,
Have passed since we made land.
A Salty Dog, the seaman's log,
Your witness, my own hand
A Salty Dog...
À memória do meu pai, recentemente falecido...
“Onde está, ó morte, o teu aguilhão?
Onde está, ó inferno, a tua vitória?”
– Coríntios 1, 15:55
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[01] MENDELSOHN, John. Rolling Stone, No. 34. My 31, 1969. p.34;
[02] SCOTT-IRVINE, Henry. Liner notes do CD “Procol Harum/A Salty Dog”. Onward Music Ltd./Union Square Music Ltd., 2009;
[03] SCOTT-IRVINE, Henry. “Gary Brooker”. Record Collector, No. 185. January 1995. p.49;
[04] HICKS, Graham. “Gary Brooker reflects on Procol Harum and the Edmonton Symphony”. Hicks On Six. Edmonton Sun.com. October 21st, 2010;
[05] WELCH, Chris. Liner notes do CD “Live in Concert with the Edmonton Symphony Orchestra”. June 2002. Repertoire Records. August 2002;
[06] W FAULDS, John. in Edmonton Journal. November 19, 1971; citado em “Procol Harum Live with the Edmonton Symphony Orchestra”. () edmontonsymphony.com. Edmonton Symphony Orchestra. 2010;
[07] PEEL, John. Comentário do famoso DJ sobre a canção, durante a reprodução da actuação dos Procol Harum no seu programa da Radio One da BBC, The Sunday Show, do dia 14 de Junho de 1970, gravada dez dias antes com Trower no baixo e Copping no orgão;
[08] WELCH, Chris. “PROCOL HARUM: one of the greatest pop singles to emerge in recent years. A Salty Dog (Regal Zonophone)”. Melody Maker, 7 June 1969.
A Salty Dog
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=2gL4GApQHKE