«“Maldito seja Canaã, disse ele, que
ele seja o último
dos escravos de seus
irmãos!”;E acrescentou: “Bendito
seja o Senhor Deus
de Sem, e Canaã
seja seu
escravo!; Que Deus dilate a
Jafet, e este
habite nas tendas de Sem
e Canaã seja seu
escravo!”»
– Génesis, 9:25-27
«Foi a escravidão
negra, ou a escra-
vidão dos descendentes cananeus de
Ham, a quem Deus autorizou a sermantidos em escravidão hereditária,
de acordo com as leis da cultura
judaica.»
– Iveson L. Brookes, Pastor Baptista(1)
Depois de muito recentemente ter visto 12
Years A Slave, o último exercício polémico do realizador afro-britânico Steve
McQueen, que aborda a escravatura – uma prática que independentemente da
época, raça e continente, não perdeu a sua actualidade,
como muita gente tem como garantida – não consegui deixar de ir repescar uma
das muitas músicas que me despertaram da ingenuidade da adolescência: Sail Away, o tema de abertura do quarto álbum,
com o mesmo nome, de Randy Newman aonde ele, aparentemente, assume um
discurso a favor do esclavagismo se não o enquadrarmos devidamente no contexto
da sua obra.
Newman é um daqueles nomes marginais na música pop – quem se incomoda devidamente com ela sabe que se podem contar
pelos dedos das mãos (e vá lá, para não me acusarem de não ser generoso, junto-lhe
os dos pés) aqueles que conhecem a sua obra [ou como ele próprio admitiu a Jon
Ronson, não há muitos anos atrás (já 14 anos?): «Há por
aí fora 40.000 pessoas que gostam de mim. Mas elas talvez fiquem surpreendidas
por ouvir dizer que estou a tentar… superá-las. Só não tenho é conseguido
fazê-lo muito bem.»(2)] mas das suas muitas canções compostas
até meados da década de 70 do século passado, Sail Away
é, será digo eu, sem qualquer dúvida a mais conhecida por eles e, por isso, a
que mais terá contribuído para o seu efémero sucesso (um #163 nas tabelas nacionais) que foi esse excelente álbum.
(Creates Something New Under The Sun)
Capa Original do LP
«Além da sua voz
rouca - que em 1968
tanto desconcertou os ouvintes levan-do a Reprise a lançar anúncios assegu-
rando-lhes que se haviam de acostumar
a isso - tudo parece sonolentamente
normal na casa do sonho Americano.»
– Ian MacDonald(3)
Capa de 12 Songs
Have You Seen My Baby? é um pastiche do rhythm’n’blues dos
anos cinquenta: Fats Domino tê-la-ia
escrito num qualquer intervalo de uma sessão de gravação mas, felizmente, tê-la-ia
esquecido de imediato... Let’s Burn Down The Cornfield soa toda ela, na
minha humilde opinião, a um daqueles blues
de escravos celebrando de forma “animalesca” (And I’ll
make love to you while it’s burning) a destruição do universo que
reclamava o seu suor e sangue de forma gratuita. Mama Told Me Not to
Come, um tema recuperado do (pelo?) sucesso alcançado pelos Three Dog Night em Março de 1970, no álbum
It Ain’t Easy, tem como sujeito as
festas de promoção arranjadas pelas editoras. Suzanne
acabaria por levar muita gente, mesmo surpreendentemente entre quem não
conhecia o seu trabalho e, por isso, desconhecendo-o completamente, a acusá-lo
de simpatia para com os violadores sexuais quando, segundo ele, ingenuidade das
ingenuidades, não passava de uma canção construída a partir do verso “she’s
touched your perfect body with her mind” inscrita na letra da sua
homónima de Leonard Cohen (LP,
Songs Of Leonard Cohen, Dezembro de
1967). Em Lover’s
Prayer, ele regressa ao universo de Mama Told
Me Not to Come mas por um outro reflexo do mesmo prisma, o das groupies que contabilizam estrelas da
cintilação pop como se nenhum
envolvimento emocional entrasse na questão (depois de ter lido I’m With The Band, de Pamela des Barres, mudei de opinião
sobre o assunto: elas são apenas uma parte da engrenagem!). Underneath The Harlem Moon com
letra (They just live for dancing/
(…) That’s why darkies were born) de Mack Gordon, um imigrante judeu
polaco, tendo sido gravada pela primeira vez por Joe Rines & His Orchestra em Março de 1932, acabará por se
tornar num dos grandes sucessos do mítico Cotton
Club aonde viria a ser exaustivamente reinterpretada (e gravada) por vários
dos seus nomes mais sonantes, dá início a uma trilogia dedicada ao racismo
aonde se inclui Yellow Man, com a sua assinatura,
que abrindo com o piano reproduzindo uma estereotipada melodia chinesa dá lugar
a uma letra aonde o preconceito mais básico (Eatin’
rice all day/ While the
children play) se mistura com o não menos estereotipado argumento
liberal (You see he believes/ In the family/ Just
like you and me), e a cover
de um tema de 1853 de Stephen Foster,
My
Old Kentucky Home, encurtada por Randy para Old Kentucky Home. Uncle Bob’s Midnight
Blues é um blues
movimentado a piano e voz, carregando toda uma tradição de narrativa da
existência nos guetos, aonde o álcool mais rasca em excesso se mistura com a
falta de esperança mais básica, e se volta a misturar com episódios que não
deixam de parecer caricatos para quem cuja existência está a mais de vinte mil
léguas longe desse universo.
«Desde o lançamento
do seu primeiro
álbum, em 1968, as cantigas de New-man passaram de um estilo que pode-
ria ser chamado de judeu para um de
que só pode ser chamado de negro.»
– Greil Marcus(4)
Capa de Live
Frente e verso de Sail Away
Greil Marcus no seu excelso Mystery Train, faz-nos
imaginar um Randy
em concerto, todo de branco – “talvez”, descreve-o ele, com um laço vermelho (encarnado
de rubro sangue?) apenas para dar alguma cor! – encarcerando em si um daqueles
senhores das grandes plantações do Sul, no tombadilho de um grande veleiro... e
quando a música entra, piano sob um fundo de cordas e metais às suas ordens,
ele passa a ser o negreiro anunciando numa qualquer praia africana, «com uma voz que combina o sotaque preguiçoso do homem negro
(algo que o seu público inventará na sua nova terra) com a suave garantia do mais
sagrado rabino»(5) a superioridade moral benevolente
e altruísta da mítica América.
In America you’ll get food to eat
Won’t have to run through the jungleAnd scuff up your feet
You’ll just sing about Jesus and drink wine all day
It’s great to be an American
Ain’t no lions or tigers
Ain’t no mamba snakeJust the sweet watermelon and the buckwheat cake
Ev’rybody is as happy as a man can be
E «Randy
confidencia: eles já estão a correr para o barco»(5)
Climb aboard, little wog
Sail away with me
Sail away
Sail awayWe will cross the mighty ocean into Charleston Bay
O seu destino é a baía de Charleston na Carolina do Sul –
um curioso destino escolhido de entre muitas outros possíveis, por uma cidade aonde
uma forte comunidade judaica (Randy é de ascendência judaica... o que não escapa
ao espírito crítico de Marcus, ele também
de ascendência judaica!) se radicou
e se desenvolveu, também (e muito) à custa do negócio negreiro transatlântico:
durante a década de 50 do século XVIII, Isaac da Costa, proeminente comerciante e agente marítimo de origem portuguesa, dominava o
negócio negreiro local mas evidentemente, não era ele que assegurava, nem mais,
nem menos, a «suave garantia do mais sagrado rabino»(5) descrita por Greil.
E a ladainha encantatória continua, sublinhando toda a
ironia refinada da letra...
In America every man is free
To take care of his home and his familyYou’ll be as happy as a monkey in a monkey tree
You’re all gonna be an American
Sail away
Sail awayWe will cross the mighty ocean into Charleston Bay
Greil não é o único a descrever esta mise
en scène – Stan Cornyn, um ex-executivo
da Warner Bros e um conhecedor da
indústria, corrobora-a
situando-a num projecto de filme em que Randy deveria dar a sua contribuição: «Randy comentou, “eu estava para entrar nele, e o Elton
John, e o Kristofferson, e alguns outros. Ia ser [um filme] multimilionário espectacular, e cada um deles iria ter
dez minutos para fazer tudo o que quiséssemos. A minha parte abria num barco
negreiro, e eu aparecia num traje completo e com óculos, com uma banda atrás de
mim, a cantar a canção para os indígenas arrebanhados. As pessoas que iam fazer
o filme, entretanto, acabaram por se meter nuns problemas com advogados e
contratos.»
Segundo Waronker,
Randy
levou seis meses e «seis diferentes arranjos dela, cada um deles
válidos por si mesmo»(6) até aceitar a versão final – um
desses arranjos viria a aparecer na reedição do álbum pela Rhino Records em 2002 e dá-nos uma ideia sobre o processo de
expurgação a que o tema foi sujeito a fim de surgir com a austeridade exigida
para contrabalançar a ironia da letra. Gravado
nos Western Studios de Los Angeles, tendo
como produtores Waronker e Russ Titelman (Van Dyke Parks resolveu também aparecer por lá na que viria a ser a
última sessão!) e como engenheiro de som, Lee
Herschberg, contou com a presença de uma orquestra de cordas e sopros, com
quarenta e cinco músicos dirigidos por Emil
Newman. Como desde há algum tempo, Herschberg recorreu a dois microfones
para registar a voz de Randy devido aos seus constantes movimentos de
cabeça, bem como ainda a uma série de pequenos truques para eliminar as vibrações
provocadas pelas batidas do seu irrequieto pé direito no pedal do piano. A última sessão de gravação levaria uma tarde
inteira até Randy
a dar por concluída com um simples «Acho que é a
melhor coisa que alguma vez ouvi.»(7) A sua mistura viria a ser elaborada nos Amigo Studios, também situados em Los
Angeles.
Nas várias versões de Sail Away
registadas por outros nomes, destaque para as de Ray Charles e Sonny Terry
& Brownie McGhee – a do primeiro surge no seu trabalho de 2002, Sings For America, embora tenha sido um
tema recorrente no seu reportório ao vivo (e, já agora, no de Etta James) desde que Randy a tornou
pública. A dos segundos, aparece no
álbum de 1973, Sonny & Brownie. Em ambas as reinterpretações, a expressão pejorativa
“little wog” é substituída por outras mais suaves, “little ones” na de Ray Charles e “little childrens” na do
duo Sonny Terry & Brownie McGhee. O facto não deixa de ser curioso se tivermos
em consideração que nenhum dos reintérpretes brancos se “preocupou” em suavizar
a expressão. Em Setembro desse mesmo
ano, Linda Ronstadt aparece com a
sua versão no LP Don’t Cry Now. Três anos
depois, em meados de 1976, surge uma das versões mais interessantes, do meu
ponto de vista, por um intérprete desde sempre fascinado com o autor: Harry Nilsson, no seu trabalho ...That’s the Way It Is.
De todas as versões, feitas desde então, a que Randy
mais volta à carga é a de Bobby Darin, em Agosto de 1972, a abrir Bobby
Darin, o seu primeiro álbum para a Motown:
«Bobby Darin pode cantar, mas ele cantou “Sail Away” e, bom...
julgo que ele não a entendeu. Ele fê-la como se fosse uma canção alegre acerca
de vir para a América.» – Randy
Newman(8)
A terminar, gostaria de mencionar (e recomendar também) um
tema dos The O’Jays, Ship
Ahoy, incluído no álbum com o mesmo título publicado em Novembro de
1973 que, embora tenha também como tema o início do calvário esclavagista em
direcção às Américas, longe da sofisticação intelectual de Sail Away
é, na verdade, todo ele, um exercício de revolta com a sua produção
verdadeiramente sombria que ilustra de forma arrepiante o terror da viagem de,
segundo as palavras cantadas com uma verdadeira sentida dor, Men,
women, and baby slaves/ Coming to the land of Liberty.
It’s great to be an
American
gócio negreiro é o nosso principal cri-
me imperialista.»
– Randy Newman(9)
«Tal como a maior
parte do material
de Newman, ela diz mais sobre a Amé-rica do que Star-Spangled Banner.»
– David Felton(7)
«A canção
transcende a sua ironia. É,
afinal, o que a América gostaria de a-creditar acerca de si mesma e, o que
dez anos de uma guerra através do o-
ceano e dez anos de amargos rostos
negros nunca a deixarão acreditar
que, mesmo em segredo, tudo o que
a América fez foi para o bem. Melhor
do que para o bem: que o trabalho de
Deus era nosso e estava destinado a
sê-lo. Que trouxéssemos algo novo e
precioso ao mundo, uma terra que a-
té os mais miseráveis escravos reco-
nheceriam como Éden.»
– Greil Marcus(10)
_____________________
(1) BROOKES, Iveson L. A Defense of Southern Slavery, against the Attacks of Henry Clay and Alex’r Campbell. Hamburg, SC. 1851. p. 5, citado in WOOD, Forrest G. The Arrogance of Faith: Christianity and Race in America from the Colonial Era to the Twentieth Century. Alfred A. Knopf: New York. 1990. p. 86;
(2) RONSON, Jon. “Little big man”. The Guardian. Saturday, 31 July 1999
(3) MACDONALD, Ian. “Newman’s Debut Album”. The People’s Music. Pimlico: London. 2003. p. 171
(4) MARCUS, Greil. “Newman’s America, I. Randy Newman: Every Man Is Free”. Mystery Train. Images Of America in Rock’n’Roll Music. Fifth Revised Edition. Plume: New York. 2008. p. 99;
(5) MARCUS, Greil. “Newman’s America, I. Randy Newman: Every Man Is Free”. Mystery Train. Images Of America in Rock’n’Roll Music. Fifth Revised Edition. Plume: New York. 2008. p. 108;
(6) FELTON, David. “Randy Newman, The Amazing Human”. Rolling Stone, Issue No. 116. August 31, 1972. p. 28;
(7) FELTON, David. “Randy Newman, The Amazing Human”. Rolling Stone, Issue No. 116. August 31, 1972. p. 29;
(8) WILLIAMS, Tim. “Interview: Randy Newman”. Fred Entrertainment, 2008;
(9) COURRIER, Kevin. “Achilles’ Subway Dream #1: Randy Newman’s Sail Away”. Critics At Large. Sunday, August 1, 2010;
(10) MARCUS, Greil. “Newman’s America, I. Randy Newman: Every Man Is Free”. Mystery Train. Images Of America in Rock’n’Roll Music. Fifth Revised Edition. Plume: New York. 2008. p. 109.
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