segunda-feira, 17 de março de 2014

RANDY NEWMAN: Sail Away



«“Maldito seja Canaã, disse ele, que
ele seja o último dos escravos de seus
irmãos!”;E acrescentou: “Bendito
seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã
seja seu escravo!;  Que Deus dilate a
Jafet, e este habite nas tendas de Sem
e Canaã seja seu escravo!”»
Génesis, 9:25-27
 
 
 
«Foi a escravidão negra, ou a escra-
vidão dos descendentes cananeus de
Ham, a quem Deus autorizou a ser
mantidos em escravidão hereditária,
de acordo com as leis da cultura
judaica.»
Iveson L. Brookes, Pastor Baptista(1)

Depois de muito recentemente ter visto 12 Years A Slave, o último exercício polémico do realizador afro-britânico Steve McQueen, que aborda a escravatura – uma prática que independentemente da época, raça e continente, não perdeu a sua actualidade, como muita gente tem como garantida – não consegui deixar de ir repescar uma das muitas músicas que me despertaram da ingenuidade da adolescência: Sail Away, o tema de abertura do quarto álbum, com o mesmo nome, de Randy Newman aonde ele, aparentemente, assume um discurso a favor do esclavagismo se não o enquadrarmos devidamente no contexto da sua obra.

Newman é um daqueles nomes marginais na música pop – quem se incomoda devidamente com ela sabe que se podem contar pelos dedos das mãos (e vá lá, para não me acusarem de não ser generoso, junto-lhe os dos pés) aqueles que conhecem a sua obra [ou como ele próprio admitiu a Jon Ronson, não há muitos anos atrás (já 14 anos?): «Há por aí fora 40.000 pessoas que gostam de mim. Mas elas talvez fiquem surpreendidas por ouvir dizer que estou a tentar… superá-las. Só não tenho é conseguido fazê-lo muito bem.»(2)] mas das suas muitas canções compostas até meados da década de 70 do século passado, Sail Away é, será digo eu, sem qualquer dúvida a mais conhecida por eles e, por isso, a que mais terá contribuído para o seu efémero sucesso (um #163 nas tabelas nacionais) que foi esse excelente álbum.
 
Randy Newman em 1971
 
Iniciado precocemente aos dezassete anos de idade como compositor de canções a cinquenta dólares por mês, para outros nomes (em especial para os The Fleetwoods mas também com outros vários temas para Jerry Butler, Jackie DeShannon, The O’Jays, Gene Pitney e Irma Thomas, nos EUA e, surpreendentemente, no Reino Unido, para os Alan Price Set, Cilla Black, Petula Clark e Dusty Springfield), em 1968, graças ao interesse obstinado de Lenny Waronker, um executivo da Warner Bros e, ao mesmo tempo, seu amigo pessoal, consegue um contrato com aquela etiqueta que lhe permite liberdade criativa sem limites para gravar o seu material muito pessoal.  Os seus três trabalhos seguintes, dois com originais registados em estúdio [Randy Newman (Creates Something New Under The Sun) e 12 Songs publicados, respectivamente, em Junho de 1968 e Abril de 1970] e um ao vivo [Randy Newman Live, em Junho de 1971, gravado por certo perante pouco mais de uma dezena de fãs ao longo de três noites em Setembro de 1970 (entre os dias 17 e 19), no clube The Bitter End, situado no famoso bairro de Greenwich Village, em Nova Iorque] para além de algumas notáveis colaborações em obscuras bandas sonoras de filmes não menos obscuros [Performance, em 1968, e Cold Turkey, no ano seguinte] que acabariam por o tornar numa verdadeira lenda viva para um número restrito de incondicionais aficionados.
 
 Capa de Randy Newman
(Creates Something New Under The Sun)
 
O primeiro álbum, Randy Newman (Creates Something New Under The Sun), que tão pouco sucesso comercial teve aquando do seu lançamento (não chegou nem às cinco mil cópias!), segundo se diz, levou a sua editora, a Reprise (uma subsidiária da Warner Bros desde 1963, embora tenha sido criada por Frank Sinatra uns três anos antes para dar uma oportunidade a nomes não conhecidos do grande público), a adoptar a decisão comercial verdadeiramente radical de oferecer um álbum à escolha a quem comprasse uma cópia de Randy Newman e isto depois de já ter mudado a sua capa original, recorrendo antes a uma fotografia em que ele aparece “menos fora de moda”, reúne uma série de canções pontuadas por um objectivo nunca assumido pelo seu autor (julgo eu!) de construir uma banda sonora – uma tradição familiar, se tivermos em conta que três dos seus tios (Alfred, Lionel e Emil) para além de uns tantos quantos primos (Thomas, David, e Joey) já eram nomes cotados nesse sector da indústria fonográfica – com uma orquestra em pleno e com arranjos a condizer que poderíamos dizer próprios de algures meia dúzia de anos antes, para um daqueles filmes que tinham como matéria algo muito mais relacionado com tempos posteriores – tirando as letras, o que realmente sobressai para o comum do ouvinte, é a sua melancolia sonora em muito resultado do trabalho de orquestração desenvolvido pelos produtores do álbum: Lenny Waronker e (o eterno “caixinha de surpresas”) Van Dyke Parks.
 
 
Capa Original do LP
 
As duas primeiras faixas, Love Story (You and Me) e Bet No One Ever Hurt This Bad, formam uma suite na perfeição, agradável de se seguir como introdução antes de dar lugar a Living Without You que é pura melancolia e a evitar pelos menos sensíveis.  So Long Dad e I Think He’s Hiding não lhe ficam atrás mesmo apesar do grau de intensidade dos mesmos e da sua diferença/relevância temática.   Linda, quando conotada com os seus “sete” barcos e “sete” gatos, inscritos nos versos iniciais, tem algo de mensagem iniciática (ou não fosse o número sete um número sagrado em quase todas as religiões mais ou menos sofisticadas) inserindo assim algo de enigmático na mensagem das suas letras.  Com Laughing Boy, seguido por Cowboy e The Beehive State, Randy imerge nas preocupações sociais fazendo de conta que está a falar em actos sem qualquer pecadilho, como ir à drugstore da esquina ou refrescar os pés na piscina de um qualquer motel.  Antes de encerrar o álbum, regressa com um dos seus mais pungentes tema melancólicos: I Think It’s Going To Rain Today – creio que não há uma qualquer canção que mencione a palavra chuva que não resulte na “mais perfeita canção melancólica” – e a terminar, o excepcional “sensível” Davy The Fat Boy.

«Além da sua voz rouca - que em 1968
tanto desconcertou os ouvintes levan-
do a Reprise a lançar anúncios assegu-
rando-lhes que se haviam de acostumar
a isso  -  tudo parece sonolentamente
normal na casa do sonho Americano.»
Ian MacDonald(3)
 
Capa de 12 Songs
 
O seu segundo trabalho de longa duração, 12 Songs, em termos sonoros resulta de um verdadeiro golpe de rins – a orquestra fica em casa ou melhor dito, passa a ser apenas um recurso acessório à sua disposição... e o expediente de incorporar toda a panóplia de sons Americana, do puro pop ao jazz, passando pelo swamp roots ou o country mas essencialmente pelo blues (e uma vez mais, ainda, pelo blues... a parecer querer justificar assim o título que lhe era atribuído pelo (co)produtor de todos os seus álbuns até pelo menos meados da década de oitenta, Lenny Waronker: “O Rei dos Cantores de Blues Suburbanos”!), é uma presença que é acompanhada por uma libertação temática em resultado de uma não menos libertação formal, na composição das letras: a ironia e o sarcasmo passam a ser definitivamente, o meio privilegiado para a grande válvula de escape das suas preocupações quer mais íntimas, quer políticas no sentido mais vasto deste vocábulo.

Have You Seen My Baby? é um pastiche do rhythm’n’blues dos anos cinquenta: Fats Domino tê-la-ia escrito num qualquer intervalo de uma sessão de gravação mas, felizmente, tê-la-ia esquecido de imediato...  Let’s Burn Down The Cornfield soa toda ela, na minha humilde opinião, a um daqueles blues de escravos celebrando de forma “animalesca” (And I’ll make love to you while it’s burning) a destruição do universo que reclamava o seu suor e sangue de forma gratuita.  Mama Told Me Not to Come, um tema recuperado do (pelo?) sucesso alcançado pelos Three Dog Night em Março de 1970, no álbum It Ain’t Easy, tem como sujeito as festas de promoção arranjadas pelas editoras.  Suzanne acabaria por levar muita gente, mesmo surpreendentemente entre quem não conhecia o seu trabalho e, por isso, desconhecendo-o completamente, a acusá-lo de simpatia para com os violadores sexuais quando, segundo ele, ingenuidade das ingenuidades, não passava de uma canção construída a partir do verso “she’s touched your perfect body with her mind” inscrita na letra da sua homónima de Leonard Cohen (LP, Songs Of Leonard Cohen, Dezembro de 1967).  Em Lover’s Prayer, ele regressa ao universo de Mama Told Me Not to Come mas por um outro reflexo do mesmo prisma, o das groupies que contabilizam estrelas da cintilação pop como se nenhum envolvimento emocional entrasse na questão (depois de ter lido I’m With The Band, de Pamela des Barres, mudei de opinião sobre o assunto: elas são apenas uma parte da engrenagem!).  Underneath The Harlem Moon com letra (They just live for dancing/ (…) That’s why darkies were born) de Mack Gordon, um imigrante judeu polaco, tendo sido gravada pela primeira vez por Joe Rines & His Orchestra em Março de 1932, acabará por se tornar num dos grandes sucessos do mítico Cotton Club aonde viria a ser exaustivamente reinterpretada (e gravada) por vários dos seus nomes mais sonantes, dá início a uma trilogia dedicada ao racismo aonde se inclui Yellow Man, com a sua assinatura, que abrindo com o piano reproduzindo uma estereotipada melodia chinesa dá lugar a uma letra aonde o preconceito mais básico (Eatin’ rice all day/ While the children play) se mistura com o não menos estereotipado argumento liberal (You see he believes/ In the family/ Just like you and me), e a cover de um tema de 1853 de Stephen Foster, My Old Kentucky Home, encurtada por Randy para Old Kentucky Home.  Uncle Bob’s Midnight Blues é um blues movimentado a piano e voz, carregando toda uma tradição de narrativa da existência nos guetos, aonde o álcool mais rasca em excesso se mistura com a falta de esperança mais básica, e se volta a misturar com episódios que não deixam de parecer caricatos para quem cuja existência está a mais de vinte mil léguas longe desse universo.

«Desde o lançamento do seu primeiro
álbum, em 1968, as cantigas de New-
man passaram de um estilo que pode-
ria ser chamado de judeu para um de
que só pode ser chamado de negro.»
Greil Marcus(4)
 
Capa de Live
 
O álbum ao vivo, registado apenas com o propósito de promover Randy nas estações mais populares de FM, acabaria por ter uma recepção por parte do público que levaria a Reprise a torná-lo no seu terceiro trabalho oficial – por essa mesma pequena peculiaridade e ao contrário da vasta maioria dos álbuns gravados ao vivo que geralmente só incluem temas já registados em álbuns publicados, ele inclui dois temas originais que viriam a fazer parte do seu próximo trabalho: Last Night I Had a Dream e Lonely At The Top.  Um álbum a evitar pelos principiantes mas a recuperar carinhosamente pelos aficionados.
 
 
Frente e verso de Sail Away
 
Sail Away é, nesta sequência, o seu trabalho de desempate: a grande surpresa (quanto a mim) é que ele, afastando-se (não muito) da “pomposidade” do seu primeiro álbum, não embarca (em demasia) na “simplicidade” do segundo, optando antes por uma linha que eu diria mais “séria” dentro da abertura proporcionada pela mudança radical deste último o que permitiu agradar aos gregos e troianos dos seus dois anteriores álbuns.  Por outro lado, as suas letras tornam-se, cada vez mais em verdadeiras pérolas pelas suas mensagens, forma e recursos estilísticos, no então panorama da música popular: da lucidez cáustica sobre a ainda actual lamúria yankee do “ninguém gosta de nós e não sei porquê” em Political Science (Asia’s crowded and Europe’s too old/ Africa is far too hot/ And Canada’s too cold/ And South America stole our name/ Let’s drop the big one/ There’ll be no one left to blame us) ao blasfemo God’s Song (That’s Why I Love Mankind) (And the Lord said:/ Man means nothing, he means less to me/ Than the lowliest cactus flower/ Or the humblest Yucca tree/ He chases round this desert/ ‘Cause he thinks that’s where I’ll be/ That’s why I love mankind), passando pelo libelo antiestrelato de Lonely At The Top (I’ve been around the world/ Had my pick of any girl/ You’d think I’d be happy/ But I’m not), um tema supostamente escrito para Frank Sinatra e, porque não, pelo compassivo Old Man (You don’t need anybody/ Nobody needs you/ Don’t cry, old man, don’t cry/ Everybody dies) ou pelo debochado You Can Leave Your Hat On (Suspicious minds are talking/ Trying to tear us apart/ They say that my love is wrong/ They don’t know what love is/ I know what love is) que viria, na década seguinte, a ter um reinterpretação verdadeiramente digna do original, na voz de Joe Cocker (LP, Cocker, Abril de 1986) sensualmente ilustrada no filme 9½ Weeks, de Adrian Lyne... mas esta conversa já vai longa para o que me levou aqui, que foi, é, o tema em questão: Sail Away!

Greil Marcus no seu excelso Mystery Train, faz-nos imaginar um Randy em concerto, todo de branco – “talvez”, descreve-o ele, com um laço vermelho (encarnado de rubro sangue?) apenas para dar alguma cor! – encarcerando em si um daqueles senhores das grandes plantações do Sul, no tombadilho de um grande veleiro... e quando a música entra, piano sob um fundo de cordas e metais às suas ordens, ele passa a ser o negreiro anunciando numa qualquer praia africana, «com uma voz que combina o sotaque preguiçoso do homem negro (algo que o seu público inventará na sua nova terra) com a suave garantia do mais sagrado rabino»(5) a superioridade moral benevolente e altruísta da mítica América.

In America you’ll get food to eat
Won’t have to run through the jungle
And scuff up your feet
You’ll just sing about Jesus and drink wine all day
It’s great to be an American

Ain’t no lions or tigers
Ain’t no mamba snake
Just the sweet watermelon and the buckwheat cake
Ev’rybody is as happy as a man can be

E «Randy confidencia: eles já estão a correr para o barco»(5)

Climb aboard, little wog
Sail away with me

Sail away
Sail away
We will cross the mighty ocean into Charleston Bay

O seu destino é a baía de Charleston na Carolina do Sul – um curioso destino escolhido de entre muitas outros possíveis, por uma cidade aonde uma forte comunidade judaica (Randy é de ascendência judaica... o que não escapa ao espírito crítico de Marcus, ele também de ascendência judaica!) se radicou e se desenvolveu, também (e muito) à custa do negócio negreiro transatlântico: durante a década de 50 do século XVIII, Isaac da Costa, proeminente comerciante e agente marítimo de origem portuguesa, dominava o negócio negreiro local mas evidentemente, não era ele que assegurava, nem mais, nem menos, a «suave garantia do mais sagrado rabino»(5) descrita por Greil.

E a ladainha encantatória continua, sublinhando toda a ironia refinada da letra...

In America every man is free
To take care of his home and his family
You’ll be as happy as a monkey in a monkey tree
You’re all gonna be an American

Sail away
Sail away
We will cross the mighty ocean into Charleston Bay

Greil não é o único a descrever esta mise en scèneStan Cornyn, um ex-executivo da Warner Bros e um conhecedor da indústria, corrobora-a situando-a num projecto de filme em que Randy deveria dar a sua contribuição: «Randy comentou, “eu estava para entrar nele, e o Elton John, e o Kristofferson, e alguns outros. Ia ser [um filme] multimilionário espectacular, e cada um deles iria ter dez minutos para fazer tudo o que quiséssemos. A minha parte abria num barco negreiro, e eu aparecia num traje completo e com óculos, com uma banda atrás de mim, a cantar a canção para os indígenas arrebanhados. As pessoas que iam fazer o filme, entretanto, acabaram por se meter nuns problemas com advogados e contratos.»
 

Randy em 1972, com o seu tio Emil
 
Outro aspecto que sempre me intrigou na canção foi o recurso ao discurso tipicamente yankee do american dream por parte do negreiro, i.e. do suposto alter ego de Newman: uma contradição mais do que evidente.   A “minha solução” para a questão foi sempre a de que Sail Away tinha (tem) muito menos a ver com o passado do que com o presente (de então e, de todo, o de agora): ele enfrenta o legado esclavagista da sua nação, não o negando mas projectando-o Hoje... a sua mordaz ironia seria assim entendida pelos que a escutam Hoje, como nada de novo desde então – o american dream continua actual e a ser um evidente discurso de sedução tal como o entendeu Harriet Tubman durante a expedição yankee ao interior da nação confederada, em meados de 1863, em plena guerra civil, pelo rio Combahee a cima, cantando como uma sereia Uncle Sam’s Farm para libertar 750 dos seus irmãos escravos.  Por outro lado, não posso deixar alienar a hipótese de que tenha sido apenas uma forma irónica de Randy de abordar o velho argumento de que “eles sempre estavam melhor do que se estivessem na sua terra natal”: In America you’ll get food to eat/ Won’t have to run through the jungle/ And scuff up your feet.

Segundo Waronker, Randy levou seis meses e «seis diferentes arranjos dela, cada um deles válidos por si mesmo»(6) até aceitar a versão final – um desses arranjos viria a aparecer na reedição do álbum pela Rhino Records em 2002 e dá-nos uma ideia sobre o processo de expurgação a que o tema foi sujeito a fim de surgir com a austeridade exigida para contrabalançar a ironia da letra.  Gravado nos Western Studios de Los Angeles, tendo como produtores Waronker e Russ Titelman (Van Dyke Parks resolveu também aparecer por lá na que viria a ser a última sessão!) e como engenheiro de som, Lee Herschberg, contou com a presença de uma orquestra de cordas e sopros, com quarenta e cinco músicos dirigidos por Emil Newman.  Como desde há algum tempo, Herschberg recorreu a dois microfones para registar a voz de Randy devido aos seus constantes movimentos de cabeça, bem como ainda a uma série de pequenos truques para eliminar as vibrações provocadas pelas batidas do seu irrequieto pé direito no pedal do piano.  A última sessão de gravação levaria uma tarde inteira até Randy a dar por concluída com um simples «Acho que é a melhor coisa que alguma vez ouvi.»(7)  A sua mistura viria a ser elaborada nos Amigo Studios, também situados em Los Angeles.
 
Cartaz publicitário
 
O álbum atingiria o #163 da tabela nacional da Billboard, um “sucesso” em muito conseguido pela popularidade alcançada por Sail Away... a Reprise acabaria, assim, por ser obrigada a disponibilizar (menos de um mês depois do álbum ter sido publicado!) em Junho de 1972, um single de promoção destinado aos DJs radiofónicos, com o tema no lado A e, no seu verso, o segundo exercício mais (polémico) relevante do álbum: Political Science.

Nas várias versões de Sail Away registadas por outros nomes, destaque para as de Ray Charles e Sonny Terry & Brownie McGhee – a do primeiro surge no seu trabalho de 2002, Sings For America, embora tenha sido um tema recorrente no seu reportório ao vivo (e, já agora, no de Etta James) desde que Randy a tornou pública.  A dos segundos, aparece no álbum de 1973, Sonny & Brownie.  Em ambas as reinterpretações, a expressão pejorativa “little wog” é substituída por outras mais suaves, “little ones” na de Ray Charles e “little childrens” na do duo Sonny Terry & Brownie McGhee.  O facto não deixa de ser curioso se tivermos em consideração que nenhum dos reintérpretes brancos se “preocupou” em suavizar a expressão.  Em Setembro desse mesmo ano, Linda Ronstadt aparece com a sua versão no LP Don’t Cry Now.  Três anos depois, em meados de 1976, surge uma das versões mais interessantes, do meu ponto de vista, por um intérprete desde sempre fascinado com o autor: Harry Nilsson, no seu trabalho ...That’s the Way It Is.

De todas as versões, feitas desde então, a que Randy mais volta à carga é a de Bobby Darin, em Agosto de 1972, a abrir Bobby Darin, o seu primeiro álbum para a Motown: «Bobby Darin pode cantar, mas ele cantou “Sail Away” e, bom... julgo que ele não a entendeu. Ele fê-la como se fosse uma canção alegre acerca de vir para a América.» – Randy Newman(8)

A terminar, gostaria de mencionar (e recomendar também) um tema dos The O’Jays, Ship Ahoy, incluído no álbum com o mesmo título publicado em Novembro de 1973 que, embora tenha também como tema o início do calvário esclavagista em direcção às Américas, longe da sofisticação intelectual de Sail Away é, na verdade, todo ele, um exercício de revolta com a sua produção verdadeiramente sombria que ilustra de forma arrepiante o terror da viagem de, segundo as palavras cantadas com uma verdadeira sentida dor, Men, women, and baby slaves/ Coming to the land of Liberty.
 
It’s great to be an American
 
«Eu escrevi ‘Sail Away’ porque o ne-
gócio negreiro é o nosso principal cri-
me imperialista.»
Randy Newman(9)

«Tal como a maior parte do material
de Newman, ela diz mais sobre a Amé-
rica do que Star-Spangled Banner.»
David Felton(7)

«A canção transcende a sua ironia. É,
afinal, o que a América gostaria de a-
creditar acerca de si mesma e,  o que
dez anos de uma guerra através do o-
ceano e dez anos de amargos rostos
negros nunca a deixarão acreditar
que, mesmo em segredo, tudo o que
a América fez foi para o bem. Melhor
do que para o bem: que o trabalho de
Deus era nosso e estava destinado a
sê-lo. Que trouxéssemos algo novo e
precioso ao mundo, uma terra que a-
té os mais miseráveis escravos reco-
nheceriam como Éden.»
Greil Marcus(10)

_____________________
(1)   BROOKES, Iveson L. A Defense of Southern Slavery, against the Attacks of Henry Clay and Alex’r Campbell. Hamburg, SC. 1851. p. 5, citado in WOOD, Forrest G. The Arrogance of Faith: Christianity and Race in America from the Colonial Era to the Twentieth Century. Alfred A. Knopf: New York. 1990. p. 86;
(2)   RONSON, Jon. “Little big man”. The Guardian. Saturday, 31 July 1999
(3)   MACDONALD, Ian. “Newman’s Debut Album”. The People’s Music. Pimlico: London. 2003. p. 171
(4)   MARCUS, Greil. “Newman’s America, I. Randy Newman: Every Man Is Free”. Mystery Train. Images Of America in Rock’n’Roll Music. Fifth Revised Edition. Plume: New York. 2008. p. 99;
(5)   MARCUS, Greil. “Newman’s America, I. Randy Newman: Every Man Is Free”. Mystery Train. Images Of America in Rock’n’Roll Music. Fifth Revised Edition. Plume: New York. 2008. p. 108;
(6)   FELTON, David. “Randy Newman, The Amazing Human”. Rolling Stone, Issue No. 116. August 31, 1972. p. 28;
(7)   FELTON, David. “Randy Newman, The Amazing Human”. Rolling Stone, Issue No. 116. August 31, 1972. p. 29;
(8)   WILLIAMS, Tim. “Interview: Randy Newman”. Fred Entrertainment, 2008;
(9)   COURRIER, Kevin. “Achilles’ Subway Dream #1: Randy Newman’s Sail Away. Critics At Large. Sunday, August 1, 2010;
(10) MARCUS, Greil. “Newman’s America, I. Randy Newman: Every Man Is Free”. Mystery Train. Images Of America in Rock’n’Roll Music. Fifth Revised Edition. Plume: New York. 2008. p. 109.

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