sexta-feira, 1 de abril de 2011

MC5 ~ A Revolução em Detroit (Parte 1)

«Mas isso deve ser claramente afirmado e enten-
dido, como foi e é pelas pessoas que participa-
ram nesse período da história do rock ‘n’ roll de
Detroit, que realmente nunca houve nada como
os MC5 daqueles dias, nem musicalmente nem
em termos de intensidade e pureza da resposta
das pessoas a eles. Era realmente muito alto. Se
eles não tivessem sido tão gananciosos e tão an-
siosos pela fácil fama do mundo das estrelas da
pop, eles poderiam ter sido realmente um fenó-
meno histórico...» – John Sinclair(1)

Foi neste tom, através de várias cartas dirigidas a alguns jornais da nova cultura jovem, que John Sinclair, figura destacada da contra-cultura dos EUA, via White Panther Party (WPP) do qual tinha sido fundador e dirigente, reagiu ao seu afastamento do lugar de empresário e mentor dos MC5.  Sinclair encontrava-se então a cumprir uma pena de dez anos de cadeia a que tinha sido condenado em Julho de 1969, por ter dado dois charros a agentes dos narcóticos infiltrados – os MC5 tinham acabado por aceitar cortar com Sinclair e a “cena política”, uma ideia que lhes vinha a ser sugerida por John Landau, um crítico musical feito produtor que a Elektra Records lhes destinara para trabalhar o seu próximo álbum e que se passara com o grupo, para a Atlantic Records.

«Quero dizer, eles são estrelas de rock ‘n’ roll,
eles queriam ser estrelas de rock ‘n’ roll e en-
quanto John dizia isso sempre de forma nega-
tiva, eu penso nisso de forma positiva.  Quero
dizer, é difícil para mim conceber que para al-
guém que esteja numa banda de rock ‘n’ roll,
o seu objectivo não seja ser uma estrela de ro-
ck ‘n’ roll.» – John Landau(2)

Sinclair era pouco mais velho do que os membros do grupo mas desde muito cedo tinha manifestado uma notória inclinação para se dar com quem não era muito recomendável para companhia de um jovem branco da classe média, mas era através desses conhecimentos que tinha ganho estatuto entre os jovens rebeldes da região.  A ligação entre ele e o grupo, remonta a Agosto de 1966, quando trocam uma breve correspondência a propósito de um artigo de sua autoria e publicado no jornal underground Fifth Estate, aonde ele depreciava o rock ‘n’ roll.  Cerca de um mês depois, Wayne Kramer, um dos dois guitarristas dos MC5, bate à porta da comuna fundada por Sinclair, a Artists Workshop (AW), à procura de um lugar para o grupo ensaiar.

Os MC5 em 1967

A 7 de Outubro de 1966, o grupo actua pela primeira vez no Grande Ballroom, uma sala de espectáculos criada à imagem do Fillmore de São Francisco, por Russ Gibb, um professor e DJ local que tinha ligações estreitas com a AW – o cartaz desse espectáculo viria a ser entregue a Gary Grimshaw, o futuro ministro das artes do WPP.

«Nós vamos a este lugar, e eu vejo, pela primei-
ra vez na minha vida, estas centenas de pessoas
de cabelo comprido, vestindo bocas de sino, tu-
do isso. Olho para a parede e ela está a rastejar
com essas imagens projectadas. Existiam luzes
estroboscópicas. Eu estava totalmente encanta-
do com esta coisa. Quando regressei a Detroit,
nos dias seguintes comecei a procurar um lugar
e encontrei o Grande.» – Russ Gibb(3)

Cartaz do Primeiro Concerto, 1968

A 24 de Janeiro de 1967, a polícia efectua um raide a todas as instalações da AW e detém cinquenta e seis pessoas, Sinclair é um deles e irá ser o único a não ser libertado.  No mês seguinte é criada a Trans-Love Energies Unlimited, organização baptizada a partir do refrão de uma canção de Donovan, Fat Angel, e que reunirá todas as vertentes ligadas à AW.  Em Março, sai o primeiro single do grupo, tendo no lado A uma cover furiosa de um tema dos Them, I Can Only Give You Everything/ One Of The Guys, gravado no Inverno anterior, nos estúdios United Sound e Tera Shirma, de Detroit, com produção de Sinclair.  Uma edição caseira de apenas quinhentas cópias, sob a etiqueta AMG, e que pouca divulgação virá a ter.  Em Agosto, Sinclair passa a manager do grupo.

John Sinclair e Fred “Sonic” Smith, 1968

«Na verdade, fui inspirado pelos agentes dos Gra-
teful Dead, quando vieram a Detroit, na sua pri-
meira digressão, em finais do verão de 1967.  An-
dei por aí alguns dias com o Rock Skully e o Rif-
kin Danny.  E pensei, “Man, esses gajos são tão
malucos como eu. Eles têm uma banda que está
na Warner Brothers e eles estão numa digressão
nacional. Deve ser possível fazer isto.” (...) e per-
cebi que era apenas uma questão de me aplicar à
situação, de fazer com que as coisas aconteces-
sem e lidar com as arestas em nome dos membros
da banda. Eu como que assumi... Eu nunca fui
realmente contratado ou coisa do tipo. Nós nun-
ca tivemos um acordo. Apenas saltei para a luta e
tomei conta do vazio que existia. Apenas pensei
que as coisas poderiam ser melhores para eles já
que eram tão bons.» – John Sinclair(4)

Na primeira semana de Janeiro de 1968, o grupo grava de novo nos United Sound Studios um segundo single, Borderline/ Looking At You, com (uma péssima) produção de Sinclair e Kramer, que será posto à venda dois meses depois, numa edição de quinhentas cópias financiada por Gibb.  Em Agosto, Sinclair é convidado de um programa radiofónico aonde está também presente Danny Fields, um caça-talentos hippie que trabalhava para a Elektra Records.  Fields passa a interessar-se pelo grupo e assiste a algumas das suas actuações no Grande e é assim que, no dia 26 desse mês, em Nova Iorque, os MC5 (assim como um outro grupo também muito popular na área de Detroit, os Stooges) assinam contrato com a etiqueta, isto depois de no dia anterior ter sido o único grupo de rock a estar presente para animar os manifestantes que participavam no Festival Of Life, em protesto contra a Convenção Nacional Democrata de Chicago.

Os MC5 no Festival Of Life, 1968

«Fields telefonou para Nova Iorque para dizer ao
patrão da etiqueta, Jac Holzman, que ele tinha de
os contratar. (…)  Holzman disse para oferecer
vinte das grandes para a banda grande e cinco pa-
ra a banda pequena irmã.» – Don McLeese(5, p.71)

Os MC5 na Elektra Records, 1968

Kick Out The Jams



Quatro dias depois de assinarem com a Elektra Records, Kramer e companhia (Rob Tyner na vocalização, Fred “Sonic” Smith na outra guitarra, Michael Davis no baixo, e Dennis “Machine Gun” Thompson na bateria), iniciam a gravação do seu primeiro trabalho de longa duração, Kick Out The Jams, um ao vivo captado no Grande Ballroom, nos dias 30 e 31 de Agosto, com toda a original energia que seduzira Fields, e uma outra sessão, gravada sem público, para posteriores retoques de produção.

«Regressem agora comigo à noite de Halloween
de 1968. É o Ano Novo do revolucionário calen-
dário Zenta. O produtor Jac Holtzman e o enge-
nheiro Bruce Botnick estão prontos na consola
de gravação. John Sinclair e Danny Fields pre-
param-se para o ataque musical. O profeta Zen-
ta, Irmão J.C. Crawford, prepara-se para fazer a
declaração e invocação de abertura. Wayne Kra-
mer e Fred Smith afinam as suas estrondosas
guitarras atómicas, resplandecentes em cequins
e lentejoulas.  O baterista Dennis Thompson e o
baixista Mike Davis preparam-se para os esfor-
ços maníacos que hão-de vir.  Eu posso sentir a
antecipada emoção erguendo-se dentro de mim
enquanto escuto o crescente ruído da multidão
que espera... O momento aproxima-se. Esta é a
noite para que trabalhámos durante todas as
nossas vidas, quando os MC5 irão desencadear
a fúria sonora e devastar o cosmos com mega-
rajadas de trovão.» – Rob Tyner(6)

Os concertos viriam a ser registados através do estúdio móvel de Wally Heider, sob a direcção de Bruce Botnick, tendo o presidente da Elektra, Jac Holzman, prometido ao grupo que se não ficassem satisfeitos com a gravação, lhes permitiria que gravassem tudo de novo, mas tal não veio a acontecer, e este terá sido um primeiro episódio na relação com a editora.  Mal o disco foi disponibilizado, em Fevereiro de 1969, uma das mais importantes cadeias de venda a retalho de Detroit, a Hudson’s, recusou-se a pô-lo à venda devido ao seu conteúdo “obsceno”.  Em desafio, o grupo publica um anúncio da autoria de Robin Sommers, na edição de 13 de Fevereiro do Ann Arbor Argus, no qual termina com a declaração de guerra de Fuck Hudson’s! e envia, de seguida, a factura à Elektra.

Fuck Hudson’s!, 1969

Em retaliação, a Hudson’s retirou dos seus escaparates todos os discos da editora, tendo assim vencido a guerra, e enquanto ela se desenrolava, outros retalhistas (segundo um porta voz da editora, cerca de setenta por cento dos retalhistas com que trabalhava), alertados para a “obscenidade” começaram a devolver as cópias que ainda não tinham vendido. A editora prepara então, secretamente, uma nova edição censurada aonde eliminava a palavra motherfuckers que tanto tinha chocado a sensibilidade da América.  A Elektra afirma que o grupo autorizou a saída de uma segunda edição censurada.  O grupo nega essa autorização.

«Eu quero deixar claro que a Elektra não é a
ferramenta da revolução de ninguém.» – Jack
Holzman(7)

O álbum abre, tal como os concertos do grupo, com as invocações do “líder religioso e conselheiro espiritual”, o Brother J.C. Crawford, e a partir daí é uma orgia de rock sedento, duro e sem concessões, aonde as guitarras lançam chamas sobre a densa barreira sonora da secção rítmica. As letras seguem a tradição rock ‘n’ roll, simples e despretensiosas, em que a mensagem é adolescente mas actualizada no sentido de que o seu conteúdo é sobre viver no limite, rápido e à beira do precipício, transmitindo a pomposa mensagem panfletária do WPP: «Total assalto à cultura por todos os meios necessários, incluindo o rock ‘n’ roll, droga e foder nas ruas.»(8) O lado um do disco, Ramblin’ Rose/ Kick Out The Jams/ Come Together/ Rocket Reducer No. 62 (Rama Lama Fa Fa Fa) é sôfrego e pesado, ou como escreveu McLeese, «O primeiro lado do álbum é (...) uma vaga de adrenalina, um rugido de testosterona, e um testemunho revolucionário do caralho que fica duro durante toda a noite.»(5, p.74) O lado dois parece-me mais elaborado e menos adolescente.  Borderline é um tema que me faz lembrar os Cream, mais pela vocalização à la Jack Bruce do que pelo tema (Need you girl, can’t you feel/ I just got to know, if it’s real/ Big and strong, hard and fine/ But you’re movin around, pushin’ me past/ My borderline, yeah yeah) ou pela composição. Talvez a melhor vocalização no álbum, por parte de Tyner.  Motor City Is Burning, um blues de Al Smith, escrito a propósito do levantamento nos ghettos em Julho de 1967 e imortalizado por John Lee Hooker, é uma celebração da revolução como os MC5 a entendem (Ya know, the Motor City is burning babe/ There ain’t a thing in the world that they can do/ Ya know, the Motor City is burning people/ There ain’t a thing that white society can do).  I Want You Right Now, é como uma homenagem a Jimi Hendrix, com uma impressionante carga eléctrica dramática.  Starship é o tema que mais se aproxima do psicadelismo (Starship take me/ Take me where I want go out there/ Among the planets/ Let a billion suns cast my shadow starship), sem dúvida mais por via Jimi Hendix ou Sun Ra (a quem também creditam a autoria do tema) do que Grateful Dead, e claro, com uma pitada de Pink Floyd do período Syd Barret.  Outros dados sobre o disco: a direcção artística da capa foi entregue a William S. Harvey e nela se inclui fotografias tiradas por Joel Brodsky (frente) e Leni Sinclair (várias outras), e uma pintura de Gary Grimshaw (a “bandeira” dos MC5).

«Bom, o álbum já está à venda e podemos julgá-
-lo por nós mesmos. Pelo meu dinheiro, eles pa-
recem-se mais com Blue Cheer do que com Tra-
ne e Sanders, mas o meu dinheiro já foi gasto na
cópia deste ridículo, arrogante, e pretensioso ál-
bum, mas talvez essa seja a ideia, não?» – Lester
Bangs(9)*

Cartaz da Elektra, 1969

«Eles bombardeiam-nos os sentidos de todos os
ângulos;  a desvantagem com o seu  álbum (E-
lektra 74042) é a de como comprar um progra-
ma de recordações para um circo Maximiliano.
(...) “Kick Out The Jams” é o álbum mais revo-
lucionário – em forma e conteúdo – de sempre
a chegar às ruas.» – Art Johnson(10)

A 16 de Abril, a Elektra mostra-se disponível para terminar o contrato desde que haja acordo mútuo, o que é aceite pelo grupo que, de imediato, se põe em contacto com a Atlantic Records e esta contrata-os – na edição de 12 de Julho da Rolling Stone, era anunciada a assinatura do contrato.

Os MC5 na Atlantic Records, 1969

* «Quando revi o primeiro álbum deles, na Rolling Stone, acabei por mencionar “os Troggs, que apareceram com uma coisa semelhante de sexo-e-violência há um par de anos atrás, e rapidamente caíram no esquecimento, onde eu os imagino estarem a rir-se dos MC5.” E isso, claro, é uma incomodativa crueldade para os Troggs, assim como para os Five. Mas então, era a primeira crítica que eu jamais tinha publicado, e mesmo que mais ameaças de morte viessem depois dessa crítica, do que numa outra qualquer, salvo a do massacre de Wheels of Fire, de Jann Wenner (e a maioria delas do doce lar de Detroit), eu consigo perceber porque ficaram enfurecidas as pessoas privilegiadas, o suficiente, para fazer parte do apocalíptico nascimento dos Five. E para compor a ironia, Kick out the Jams tem sido o meu álbum favorito, ou pelo menos um dos dois ou três mais tocados, de há três meses.» – Lester Bangs(11)




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