O Período Europeu (continuação)
Capa de Berlin
Depois de dois concertos em Londres e do fim pouco pacífico da ligação a Bowie, com direito a discussão e agressão em público, Lou Reed regressa aos EUA aonde, no começo de Dezembro, inicia uma digressão acompanhado por um grupo, os The Tots, formado para o efeito. Em Janeiro, casa-se em Nova Iorque – «com uma rapariga», esclarece a Rolling Stone na sua edição de 1 de Fevereiro. Entretanto, Dennis Katz, o seu manager, entrara em contacto com Bob Ezrin, um jovem produtor de vinte e quatro anos, mais conhecido pelo seu trabalho com Alice Cooper para o convencer a produzir o novo trabalho de Reed. Ezrin reúne rapidamente um grupo de excelentes músicos dispostos a contribuir para a banda sonora da nova megalomania de Reed, um álbum que irá contar a história de dois amantes dependentes de speeds, na cidade dividida, Berlim, e é assim que no dia 25 de Julho iniciam a gravação da mesma, nos Morgan Studios, em Londres. O grupo base consistia nos dois guitarristas do(s?) Alice Cooper, Steve Hunter e Dick Wagner; no baixo, o famoso Jack Bruce; e na bateria; outro nome não menos famoso, Aynsley Dunbar. Para as teclas, estaria o próprio Ezrin (piano e mellotron) e (mais um outro “peso pesado”) Steve Winwood (órgão e harmónio), enquanto que na secção de metais, três nomes quase desconhecidos: Michael e Randy Brecker, e Jon Pierson. Com o decorrer das sessões, novos nomes foram adicionados, em especial para as faixas Lady Day e The Kids (os baixistas Gene Martynec e Tony Levin, e o baterista B.J. Wilson), ou para contribuições esporádicas de piano, em Berlin entregue a Allan Macmillan e, em Men Of Good Fortune, a Blue Weaver.
«Às 10 da manhã numa quente e húmida Nova
Iorque, no estúdio A da Record Plant, um delga-
do, sombrio, intenso jovem está implantado por
detrás da mesa de 16 pistas, fazendo malabaris-
mos nos botões e balançando para cima e para
baixo a poderosa reprodução das batidas graves
da bateria de Aynsley Dunbar. Bob Ezrin, meni-
no prodígio, está a trabalhar.» – Larry Sloman(12)
Após as sessões de gravação, com o engenheiro Jim Reeves, terem terminado, as pistas gravadas foram enviadas para os Record Plant Studios, de Nova Iorque, aonde Ezrin deu os últimos (e decisivos) retoques, e em Julho de 1973, Berlin é posto à venda.
Uma vez mais, Reed volta a pegar em canções antigas para as voltar a arranjar: Berlin é uma versão da canção com o mesmo título que aparece no seu primeiro trabalho a solo; Men Of Good Fortune já tinha sido tocada ao vivo no tempo da Factory, o mesmo se passando com Sad Song; Oh, Jim e Caroline Says II são, respectivamente, versões de um tema nunca antes editado, Oh, Gin, e de Stephanie Says.
Reed, início de 1973
A capa viria a ser entregue a uma mini empresa recém criada, a Pacific Eye & Ear, que utilizou fotos tiradas pelo fotógrafo St. Javago Desang.
O álbum viria a receber críticas devastadoras por parte da imprensa musical, e acabaria por se tornar num fracasso comercial, embora tenha conseguido nas tabelas do Reino Unido, uma posição superior (#7) à alcançada pelo álbum anterior.
«Mas o álbum foi, como diz o sr. Reed, “um fa-
lhanço monumental, na altura em que saiu –
comercialmente, criticamente, é só nomear.” Os
críticos atacaram-no brutalmente. Um crítico
da Rolling Stone (...) chamou-lhe de “um desas-
tre”; um outro descreveu a vocalização como
“se fosse o uivo quente da lontra agonizando.”
(No entanto, nem todos os escritores foram tão
cruéis. John Rockwell, do New York Times, e-
logiou-o como “um dos mais fortes, mais ori-
ginais discos de rock de há anos” e a Rolling
Stone deu o passo fora do normal de publicar
uma refutação da sua própria crítica, dizendo
que “a beleza não tem nada a ver com a arte,
nem o bom gosto, as boas maneiras ou bons
costumes.”)» – Ben Sisario(13)
Depois de uma breve e caótica introdução, uma versão dramática a piano e voz, de Berlin, é servida como tema de abertura com o propósito de localizar o enredo. Lady Day apresenta-nos, com uma vocalização marcada pela tensão do próprio ritmo da música que parece poder explodir a qualquer altura e sem mencionar o seu nome, a personagem feminina (When she walked on down the street/ She was like a child staring at her feet/ But when she passed the bar/ And she heard the music play/ She had to go in and sing) – atenção ao órgão de Winwood lá no fundo. Excelente. Men Of Good Fortune é o “lamento do bandido” (Men of good fortune, often cause empires to fall/ While men of poor beginnings, often can’t do anything at all/ It takes money to make money they say/ Look at the Fords, but didn’t they start that way/ Anyway, it makes no difference to me) e aparece como uma balada, pesada e longa, aonde Reed tem necessidade de, frequentemente, nos dizer que lhe é impessoal a história que conta. Em Caroline Says I, através do personagem masculino, é nos sugerido uma série de pequenos detalhes sobre a personagem feminina, Caroline (Caroline says moments in time/ Can’t continue to be only mine/ Oh, Caroline says, yeah, Caroline says/ She treats me like I am a fool/ But to me she’s still a German Queen). Extraordinário trabalho o de arranjo orquestral por parte de Ezrin e Allan MacMillan, sublinhando o dramatismo do tema e a vivacidade com que Reed aparece a cantar, permitindo uma sequência perfeita com a introdução do baixo (Jack Bruce) e do piano (Ezrin) de How Do You Think It Feels, o tema mais violento (How do you think it feels/ When you’re speeding and lonely/ Come here baby/ How do you think it feels/ When all you can say is: If only) a ser tocado até agora. Uma guitarra impressionante bem servida sobre um fundo de metais não menos poderosos. Com Oh Jim, ficamos a saber que o personagem masculino, Jim de seu nome, é adepto da violência quando se trata a por as coisas nos devidos eixos (And when you’re filled up to here with hate/ Don’t you know you gotta get it straight/ Filled up to here with hate/ Beat her black and blue and get it straight). Um final surpreendente de Reed e a sua guitarra acústica, a fazer lembrar os Everly Brothers numa daquelas baladas rock’n’roll da década de cinquenta, depois de uns segundos com Hunter a dar-nos com a sua guitarra o que sabe, sobre um manto de metais. O lado dois do disco abre com Caroline Says II, uma canção de amor aonde ironicamente, Reed põe Caroline a dizer a Jim que já não o ama (Caroline says, as she gets up from the floor/ You can hit me all you want to, but I don’t love you anymore/ Caroline says, while biting her lip/ Life is meant to be more than this, and this is a bum trip) e a partir daqui compreende-se porque razão muita gente diz que este é o álbum mais triste e depressivo de toda a história do rock: The Kids, é talvez o momento mais dramático de todo o álbum, com Reed cantando-o com alguma da raiva que as palavras lhe exigem (They’re taking her children away/ Because they said she was not a good mother/ They’re taking her children away/ Because of the things that they heard she had done/ The black Air Force sergeant was not the first one/ And all of the drugs she took, every one, every one). Uma balada vagueando entre a folk e a música country, e uns efeitos especiais com choros, gritos e vozes aflitas de crianças (segundo se diz, são das próprias filhas de Ezrin) que transmitem na perfeição o momento dramático em que o filho é retirado a Caroline. Em The Bed, na mesma toada angustiante do tema anterior, Jim é confrontado com o suicídio de Caroline (And this is the place where she cut her wrists/ That odd and fateful night/ And I said, oh, oh, oh, oh, oh, oh, what a feeling). Uma vez mais, parece-me descobrir alguma emoção na voz de Reed, talvez reflexo da toada triste da sua guitarra acústica, e os arranjos corais e instrumentais estabelecem o fundo perfeito para a entrada em Sad Song que, na sua imponência orquestral, não deixa de ser o que o título sugere, uma canção triste. Jim faz uma reflexão final sobre a sua relação com Caroline (Staring at my picture book/ She looks like Mary, Queen of Scots/ She seemed very regal to me/ Just goes to show how wrong you can be).
«Berlin, de Lou Reed, é um desastre, levando o
ouvinte a um distorcido e degenerado submun-
do de paranóia, esquizofrenia, degradação,
violência induzida por comprimidos e suicídio.
Há alguns discos que são tão declaradamente
ofensivos que se deseja cometer algum tipo de
vingança física sobre os artistas que os fizeram.
A única desculpa de Reed para este tipo de a-
ctuação (que não é realmente executada tanto
quanto falada e gritada sobre a produção coxa
de Bob Ezrin) só pode ser a de que esta era sua
última oportunidade numa carreira uma vez
promissora. Adeus, Lou.» – Stephen Davis(14)
Arredores (Pós-Período Europeu...)
Pouco depois de Berlin sair, Larry Sloman da Rolling Stone, perguntou a Lou Reed, que na altura já ensaiava para a próxima digressão, o que tinha a dizer sobre o seu novo álbum...
«Estou exausto mas feliz. Eu não tenho andado
animado há anos, mas isto é excitante. É algo
que sempre quis fazer, não um álbum conceptu-
al mas algo totalmente novo. (...) Tive o cuidado
de escrever as letras de modo directo e ao ponto,
não há jogos de quadris nelas, não têm de estar
pedrados para chegarem lá. É apenas uma his-
tória realista acerca de pessoas que vivem nos
anos setenta, que existem, que não são especial-
mente loucas ou degeneradas. Isso acontece com
pessoas a qualquer momento, não só em Berlim,
mas em lugares como o Ohio.» – Lou Reed(12)
A digressão, com o título The Rock And Roll Animal Tour, teve o seu arranque com uma única aparição nos EUA, no Music Inn de Lenox, Massachusetts, atravessando depois o Atlântico em direcção à Europa Continental, com passagens pela Suécia, Alemanha Federal, França Dinamarca, Holanda – aonde Reed resolveu passar a noite numa festa o que, na noite seguinte, provocaria o seu colapso em pleno palco do Marini Hotel, de Bruxelas. Da Bélgica, passaram ao Reino Unido (Escócia e Inglaterra). Para além das constantes atitudes de mau humor por parte do próprio Reed, os confrontos entre o público e a segurança dos recintos, passaram a ser uma marca da sua passagem por esses países. Depois de uma interrupção de cerca de dois meses, em Dezembro, a digressão retoma a sua rota nos EUA. A vinte e um desse mês, o grupo actua na Academy of Music de Nova Iorque, num espectáculo que Dennis Katz preparara para ser gravado, tendo para isso contratado o estúdio móvel da Record Plant. Dessas gravações sairiam esses dois verdadeiros monumentos ao rock que são Rock‘n’Roll Animal (Fevereiro de 1974) e Lou Reed Live (Março de 1975) – bom, no mínimo, o primeiro... Pelo meio fica um registo amorfo, decepcionante a todos os níveis, Sally Can’t Dance (Agosto de 1974), embora tenha cumprido o objectivo da sua editora: facturar.
Reed, meados de 1973
Cerca de um ano depois da saída de Berlin, Lou Reed dirá ao jornalista Nick Kent:
«‘Berlin... quero dizer, eu tive de... tive de fazer
Berlim... se não o tivesse feito... teria enlouque-
cido. (...) Foi loucura fazê-lo depois de um úni-
co sucesso... mas... mas quero dizer, já estava to-
do escrito. Se não conseguisse tirá-lo da minha
cabeça teria explodido. (...) Não, não era uma
comédia negra no que nos tocava. Eu sabia que
estávamos abertos para isso, vendo como ele sa-
iu, uh, após o Transformer. Quero dizer, eu
gosto do Transformer... é um álbum divertido,
sabes... o Transformer é um álbum divertido
e Berlin não é.’» – Lou Reed(15)
Pressionado pela RCA Records para mais um álbum em estúdio, decepcionado com a crítica musical que parecia não o largar a cada novo registo, e com o público que preferia comprar Sally Can’t Dance a Berlin, desenvolvendo paranóias graves devido ao seu envolvimento quer com as metanfetaminas, quer com um travesti de nome Rachel, Reed resolve, como era típico nele, dar mais um disco-choque: Metal Machine Music, posto à venda em Julho de 1975.
«Se as pessoas não percebem o quanto divertido
é ouvir Metal Machine Music, é deixá-los fumar
a sua fodida marijuana (...). Eu não faço discos
para os fodidos filhos das flores.» – Lou Reed(16)
Reed, finais de 1974
______________________
(1) REED, Lou. “I’m Waiting For The Man”, The Velvet Underground & Nico, gravado em Junho/Julho de 1966, publicado em Março de 1967;
(2) FEVRET, Christian. “Heróis. Superstars. Andy Warhol e os Velvet Underground.”. Les Inrockuptibles. Tradução, actualização e anexos de João Lísboa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1992;
(3) LARKIN, Colin. “Lou Reed”. Virgin Encyclopedia Of Seventies Music, Londres: Virgin Books. 1997. p.352;
(4) DECURTIS, Anthony. “It Was All Right: The Best Of The Velvet Underground”. CD Sleeve Notes. 1989;
(5) FRICKE, David. “Lou Reed. The Rolling Stone Interview”. Rolling Stone, Nr. 551, May 4th, 1989. p.42;
(6) HOLDEN, Stephen. “Lou Reed”. Rolling Stone, Nr. 109, May 25, 1972. p.68;
(7) WATTS, Watts . “Oh You Pretty Thing”. Melody Maker. January 22, 1972. p.19;
(8) FRICKE, David. “Lou Reed. I was interested in writing the Great American Novel”. Rolling Stone, Nr. 512, November 5th, 1987. p.294;
(9) LEWIN, Jon. “Ground Breakers. Transformer. Lou Reed”. VOX, September 1994. p.154;
(10) “The 500 Greatest Albums Of All Time. 194. Transformer. Lou Reed”. Rolling Stone, Nr. 937, December 11, 2003. p.140;
(11) TOSCHES, Nick. “Transformer. Lou Reed”. Rolling Stone, Nr. 125, January 4, 1973. p.61;
(12) SLOMAN, Larry. “Lou Reed’s New Deco-Disk: Sledgehammer Blow To Glitterbugs”. Rolling Stone, Nr. 144, September 27, 1973. p.18;
(13) SISARIO, Ben. “Revisiting a Bleak Album to Plumb Its Dark Riches”. The New York Times. December 13, 2006;
(14) DAVIS, Stephen. “Berlin . Lou Reed”. Rolling Stone, Nr. 150, December 20, 1973. p. 84;
(15) KENT, Nick. “Lou Reed: The Wasted Years”. The Dark Stuff. Cambridge : Da Capo. 2002 Edition. p.173;
(16) BANGS, Lester. “How to Succeed in Torture Without Really Trying”. Psychotic Reactions and Carburetor Dung. New York : Anchor Books. 2003. p.193. Originalmente publicado na edição de Fevereiro de 1976, da revista Creem.
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