Por estes dias em que os EUA são uma das partes activas da “preocupação humanista” do Ocidente com a repressão por alguns regimes, da população civil em plena revolta nalguns países no norte de África, acho que é uma boa altura para recordar uma das melhores músicas gravadas – na minha opinião – por esse super-grupo que foram (são?) os Crosby, Stills, Nash & Young: Ohio!
Comecemos então pelos acontecimentos que despoletaram a veia criativa de Neil Young, o autor da canção em questão...
Durante a campanha presidencial de 1968, Richard Nixon conseguiria reunir em torno da sua candidatura todos aqueles que estavam cansados de ver a América a ser afrontada nos seus valores mais tradicionais – a falta de patriotismo misturava-se com o aumento do consumo de drogas que, diziam, fazia aumentar o crime, os estudantes misturavam-se com esses vagabundos que se chamavam de hippies, e com os comunistas dos manifestantes anti-guerra – e ele apelou à “maioria silenciosa” para que ela o elegesse, e à reposição da ordem e dos valores ameaçados. E venceu, prometendo também o fim da intervenção militar dos EUA no Vietname (mas com honra!) que, evidentemente, preocupava também a dita “maioria silenciosa”.
Richard Nixon em acção
Num discurso televisivo, a 30 de Abril de 1970, Nixon dava conta de que tinha autorizado a invasão do Cambodja para cortar as linhas de abastecimento do exército norte-vietnamita. As inúmeras organizações anti-guerra, acabariam por denunciar o facto como um aumento da escalada na guerra, e as universidades e outros estabelecimentos de ensino de todo o país, repletas de “carne para canhão”, responderam com greves e protestos que paralisaram cerca de 536 delas.
Na Universidade Estadual de Kent, os “problemas” iniciam-se no dia seguinte à intervenção televisiva de Nixon: cerca de quinhentos estudantes iniciam o protesto mas sem qualquer sucesso. Por volta da meia-noite, começam então a surgir pequenas escaramuças com a polícia, nas zonas aonde se situavam os bares e clubes frequentados pela juventude. No dia seguinte, o presidente da câmara decide contactar o governador do Ohio, para lhe solicitar a intervenção da Guarda Nacional.
A situação rapidamente atingiria níveis que demonstravam a falta de tolerância por parte das autoridades locais e estaduais, e durante os dias seguintes, várias manifestações viriam a ser reprimidas à força, provocando alguns feridos.
Quando a 4 de Maio, cerca de 2 mil manifestantes anti-guerra se reúnem num parque contíguo à universidade, dão de caras com as forças da Guarda Nacional. Após uma tentativa falhada de dispersar os manifestantes através de gás lacrimogéneo, a opção foi uma vez mais uma carga com baionetas, e enquanto os manifestantes fugiam, foi dada a ordem para uso de fogo real sobre eles – em treze segundos, sessenta e sete balas foram disparadas. Resultado: quatro estudantes mortos (Allison Krause, Jeffrey Miller, Sandra Scheuer e William Knox Schroeder, sendo que estes dois últimos iam em trânsito para outra aula) e nove feridos, um dos quais ficou paraplégico para o resto da vida.
As vítimas mortais de 4 de Maio
«Quando vi a maneira como levaram aquela
rapariga [Leslie Bacon] para Seattle, essa
miúda que eles acusavam de conspiração, eu
pensei – nós estamos apenas a alguns passos
da Alemanha nazi.» - Doris Krause, mãe de
uma das vítimas mortais de Kent(1)
O acontecimento rapidamente teve a devida cobertura nacional – eram notícias que vendiam. A revista Life foi uma das que resolveu cobrir o acontecimento.
Capa da edição de 15 de Maio de 1970, da revista Life
Neil Young, no quarteto, era uma espécie de identidade à parte – o “& Young” era um pouco a sua imagem – e um dos aspectos que o separava definitivamente dos outros era o não querer defender publicamente causas políticas.
«Neil tinha a posição política que eu próprio
mantenho agora, e que penso ser a mais cor-
recta. Não creio que os músicos devam de-
fender causas políticas.» – David Crosby(2)
Após terem sido obrigados a interromper a sua digressão que tinha arrancado no começo do mês, por terem despedido a sua secção rítmica, Greg Reeves e Dallas Taylor, que exigiam um papel mais participativo nos concertos, Young retirara-se temporariamente com David Crosby para Butano Canyon, perto de Pescadero. Isolados do mundo só viriam a saber dos acontecimentos da Universidade de Kent, quando Crosby adquiriu a edição de 15 de Maio da revista Life.
«Passei-lhe a revista com a notícia das mortes
em Kent State. Ele leu o artigo pegou na gui-
tarra e começou a escrever a canção. Fiquei a
vê-lo escrever.» – David Crosby(3)
O que mais terá chamado à indignação de Young terá sido uma das fotografias tiradas por John Paul Filo, um estudante graduado que trabalhava no laboratório de fotografia da universidade, aonde aparece uma rapariga (Mary Vecchio) a chorar em desespero perante o corpo deitado no chão de um dos jovens mortos (Jeffrey Miller) pela Guarda Nacional.
«Eu tinha ali a revista 'Time', com aquela rapa-
riga a olhar por um estudante morto deitado no
chão com o sangue e tudo aquilo, apenas escre-
vi isso.» – Neil Young(4)
A foto que daria um prémio Pulitzer a John Paul Filo
No dia 20, Neil Young e David Crosby dirigem-se para Los Angeles aonde se encontram com os restantes membros do grupo que entretanto já tinham sido contactados por Crosby – nessa noite ensaiaram juntos e é, nessa altura, que ela passa de uma canção folk a um tema eléctrico. No dia seguinte estavam nos Record Plant Studios para a gravar, assim como a composição de Stephen Stills dedicada aos desaparecidos na guerra do Vietname e que vinha a servir de encore nos concertos do grupo, Find The Cost Of Freedom, que se tornaria no lado B do single.
«Todos nós sentimos o mesmo por ela. Na reali-
dade, logo que a tocámos para o Steven e para o
Graham fomos logo para o estúdio e gravámo-la.
Gravámos todo o disco, ambos os lados, em uma
noite, e terminámo-lo no dia seguinte.» – David
Crosby(5)
Durante a gravação que contou ainda com a presença do engenheiro de som Bill Halverson e a nova secção rítmica formada pelo baixista Calvin “Fuzzy” Samuels e o baterista John Barbata, e que não ultrapassou os quinze minutos(3), o grupo comportou-se como se estivesse ao vivo, tocando juntos.
«Nós fomos até lá e tocámo-la assim. Aquelas
palavras extra, no final: “Why?” “Why?” “How
many?” “How many more?”... sabes? Nem fa-
ziam parte da canção, aconteceu exactamente
quando chegámos ao fim. Foi uma gravação ao
vivo, man, de gajos reagindo apenas ao nosso
mundo, é tudo.» – David Crosby(5)
«David Crosby chorou depois de a gravarmos.»
– Neil Young(6)
Ainda durante esse dia, ambas as músicas foram misturadas e receberam os últimos retoques, tendo o quarteto servido como produtores, e quando terminadas, foram enviadas para os escritórios da Atlantic Records, em Nova Iorque.
Dia 25, a editora notifica o grupo de que cópias do single já estavam a ser prensadas e que dentro de uma semana, ele estaria disponível ao público.
Capa do single
Antes de o single ser disponibilizado ao público, a editora fez chegar uma cópia à KMET-FM, de Los Angeles(7), que passa a divulgar regularmente Ohio na sua programação. Sobre a sua transmissão na onda média, o grupo duvidava que alguma vez viesse a acontecer.
«Acho que eles não a vão tocar, ela nomeia no-
mes.» – David Crosby(7)
E, de facto, o tema viria a ser censurado por várias estações, sempre pela mesma razão, porque “incitava à violência”.
Quando Young completou a canção e a mostrou a Crosby, o único comentário que teve foi o de «Eu não sei, eu nunca escrevi nada como isto antes... mas está aí...»(7). Alguns anos depois, Young manifestar-se-ia sobre o tema do seguinte modo: «Ainda é difícil de acreditar que escrevi esta canção. É irónico que capitalizei com a morte desses estudantes americanos. Provavelmente a lição mais importante que aprendemos num lugar americano de aprendizagem. O meu melhor momento com os CSNY. Gravado totalmente ao vivo em Los Angeles.»(6)
Os Crosby, Stills, Nash & Young
O single chegaria ao #14 da Billboard Hot 100, na mesma altura em que o grupo tinha também Teach Your Children nas tabelas.
(Neil Young)
Tin soldiers and Nixon coming,
We're finally on our own.
This summer I hear the drumming,
Four dead in Ohio .
Gotta get down to it
Soldiers are gunning us down
Should have been done long ago.
What if you knew her
And found her dead on the ground
How can you run when you know?
Na, na, na, na…
Gotta get down to it
Soldiers are gunning us down
Should have been done long ago.
What if you knew her
And found her dead on the ground
How can you run when you know?
Tin soldiers and Nixon coming,
We're finally on our own.
This summer I hear the drumming,
Four dead in Ohio .
_________________
(1) ESZTERHAS, Joe. “Ohio Honors Its Dead”. Rolling Stones, Nr. 84. June 10, 1971. p.16;
(2) ROGAN, Johnny. “Neil Young. A História Definitiva Da Sua Carreira Musical”. Tradução de Sérgio Potugal. Lisboa: Assírio e Alvim. Julho de 1983. p.119;
(3) ROGAN, Johnny. “Neil Young. A História Definitiva Da Sua Carreira Musical”. Tradução de Sérgio Potugal. Lisboa: Assírio e Alvim. Julho de 1983. p.120;
(4) “The Best 100 Singles of the Last Twenty-five Years. 76 Ohio ”. Rolling Stone, Nr. 534. September 8th, 1988. p.134;
(5) FONG-TORRES, Ben. “David Crosby. The Rolling Stone Interview”. Rolling Stone, Nr. 63. July 23, 1970. p.23;
(6) YOUNG, Neil. Decades CD Sleeve Notes. Warner Bros. Records. 1977. p.14;
(7) “Tin Soldiers & Nixon’s Coming”. Rolling Stone, Nr. 61. June 25, 1970. p.9.
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