«O Ginger Baker pegou no telefone e
ligou-me para o Melody Maker. Ele
tinha notícias excitantes para a im-
prensa musical britânica. “Eu deixei
os Graham Bond e estou a formar um
grupo, com o Eric Clapton. E o
Jack
está nele também!”»
– Chris Welch[1]
Chris Welch era na
altura, meados de 1966, um dos jornalistas mais disponíveis para as novas
correntes musicais que iam surgindo no circuito dos pequenos clubes urbanos
britânicos, cobrindo-as para o (ainda) conservador Melody Maker e é a ele que Ginger Baker recorre para, de facto, forçar a
criação do grupo. Então, a 11 de Junho,
sob o título de «Eric, Jake & Ginger Juntam-se»,
o MM assinalava num texto de Welch que «UM SENSACIONAL novo “Grupo dos Grupos”
com Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker está a ser formado.»
Claro,
o “língua de trapo” do Baker ao
contactar o MM, acabaria por criar
uma série de problemas aos dois outros membros do grupo – Eric Clapton: «Nos meses
seguintes, continuamos a ensaiar em segredo, onde e sempre que podíamos, e
tínhamos um acordo tácito de que essa era a maneira como as coisas deveriam
continuar até que estivéssemos preparados para ir a público. Afinal, todos nós
tínhamos contrato com outras bandas. Então o Ginger pôs o gato fora do saco
dando uma entrevista ao Chris Welch do Melody Maker, soltando assim o inferno.
O Jack estava furioso e quase chegou a vias de facto com o Ginger e eu tive a
difícil tarefa de me explicar a John Mayall que tinha sido como um pai para
mim.»[2]
A árvore genealógica dos
Cream
Desde
o momento zero, quando Baker resolveu desafiar Clapton a formar com ele o grupo, o
ego de cada um dos seus membros acabaria por ser o seu principal problema. Clapton, supostamente o menos conflituoso dos três,
mostrava-se errático quanto ao que queria: tendo abandonado os Yardbirds em Maio de 1965, acusando-os
de optarem pela via mais fácil, a comercial (Clapton: «Quando
os Yardbirds decidiram gravar “For Your Love” eu sabia que, para mim, era o
começo do fim pois não via como poderíamos gravar um disco como aquele e
continuar como estávamos. Parecia-me que nos tínhamos vendido completamente.»[3]), acabaria
por se integrar naturalmente no círculo dos blues,
juntando-se a John Mayall, para rapidamente
chegar à conclusão de que os Bluesbreakers
eram muito limitados, reduzindo-se a fazer “cópias”
dos blues originais. Baker e Jack Bruce conheciam-se desde quase o início da
década, dos Blues Incorporated de Alexis Korner e, mais tarde, voltariam
a encontrar-se na Graham Bond
Organization, onde a sua relação se deteriorou, tornando-se gradualmente mais
violenta – Bruce: «Eu estava a tocar um solo, mas o Ginger tocava por cima
dele. Então apenas olhei para ele e ele atirou-me uma baqueta, então eu atirei
o meu baixo e demoli a bateria toda – no meio do concerto. (…) Corríamos à volta
do palco e (…) eu senti-me um
total imbecil acerca daquilo tudo.»[4] Baker: «Deu-me completamente uma névoa vermelha, a intenção era a de o matar.
Uma boa parte da multidão ainda estava lá e começou a cantar “He loves you, yeh!
Yeh! Yeh”.»[5] Welch
sugere que Baker
via o Bruce:
como «um espírito rebelde que tinha de ser
esmagado» e que «o confronto dos
seus temperamentos escocês e irlandês não ajudava quando havia a necessidade de
solucionar argumentos sobre tempos e volume.»[6] No fim, Bruce acabaria por ser expulso do grupo pelo
próprio Baker,
tendo-se então mudado para os Bluesbreakers
aonde se encontraria, por um breve período, com um Clapton prestes a partir para uma
digressão mundial que acabaria na Grécia, refém do dono do clube nocturno onde ele
e os seus companheiros tocavam os sucessos comerciais da altura, dos The Beatles aos The Kinks passando, naturalmente, pelos The Rolling Stones.
No
dia 13 de Maio de 1966, uma sexta-feira, os Bluesbreakers de Mayall
actuavam no Oxford Town Hall e Baker,
acompanhado pela esposa, dirigiu-se até lá com a intenção de falar com Clapton
que, por essa altura, já era objecto em Londres de graffitis considerando-o um deus: «Depois
do concerto eu disse ao Eric, “Estou a formar uma banda, estás interessado?” E
ele, de imediato, disse “Sim”.»[7] Bom, segundo
Eric,
apesar de saber que entre o Baker e o Bruce «não restava muito
amor», o tal sim “de
imediato” teria ficado condicionado a um sim do Bruce para o lugar de baixista do
grupo[8] e Baker
acabaria por ceder, entrando ele próprio em contacto com o outro.
Os Cream em 1966
Por
sugestão de Eric,
o grupo adoptaria o nome de The Cream e, de acordo com um exercício descritivo
do seu manager, Robert Stigwood, num
comunicado distribuído em finais de Junho, «O
primeiro é o último e o último é o primeiro, mas o primeiro, o segundo e o
último são os Cream.» anunciando ainda nesse mesmo comunicado que
o grupo iria gravar para a sua etiqueta, a Reaction
Records, logo na semana a seguir[9] – não foi em Junho, nem em Julho, mas sim em Agosto,
que o grupo gravou o seu primeiro single,
Wrapping Paper, que acabaria por vir a ser
publicado a 7 de Outubro, tendo atingido no mês seguinte um modesto #34 nas tabelas britânicas. A crítica musical britânica mostrou-se, naturalmente,
desapontada preferindo recomendar aos seus leitores o lado B, Cat’s Squirrel. Comentário de Ginger Baker: «Esse
foi o primeiro fiasco de Bruce-Brown!»[10]
Pete Brown, poeta
e músico – um beatnik! – desde há
muito ligado a sessões de leitura de poesia acompanhada por jazz e blues, acabaria por aparecer ligado ao grupo através de um convite
feito por Baker
– Brown: «Na altura, o Ginger conhecia-me muito melhor do que o Jack. (…) um dia recebi um telefonema pedindo-me para ir até a um
estúdio de gravação em Chalk Farm. Eles tinham escrito uma canção para os Cream
e precisavam de uma letra.»[11]; Baker: «O Pete envolveu-se
quando lhe pedi para vir escrever algumas letras para nós e, por ‘nós’ eu
queria dizer o Eric, eu e o Jack. Essa era a ideia.»[12] A verdade é que com o desenvolvimento criativo
do grupo, Bruce
acabaria por se tornar no único parceiro de Brown ou vice-versa, como quiserem: «(...) Acho
que tinha essa química com o Jack. E havia uma enorme falta de material. (...)
Eu na altura sempre escrevia com o Jack.»[13]
Em
Dezembro de 1966, o grupo publica o seu primeiro trabalho de longa duração, Fresh Cream. Gravado em estúdios britânicos que, na
altura, apenas utilizavam quatro pistas, aceitável para o sistema mono, péssimo para o sistema estéreo.
Não tendo sido um sucesso comercial, nem tão pouco para a crítica da
especialidade, acabaria, no entanto, por abrir as portas ao que se lhe seguiu, Disraeli Gears;
este, já gravado com toda a qualidade
possível na época (no excelente estúdio da Atlantic
Records, em Nova Iorque, e contando com a presença de um produtor e
engenheiro eleitos pela própria etiqueta), viria a ser disponibilizado em
Novembro de 1967, chegando em poucos meses a #1 em Inglaterra e a #4
nos EUA.
Os Cream em Central Park, NY,
1968
O
terceiro LP, um duplo com o título de
Wheels of Fire,
inclui temas gravados em estúdio (no disco 1) e ao vivo (no outro) e acabaria
por vir a público primeiro nos EUA, em Julho de 1968 e, só um mês depois em
Inglaterra, numa manobra para captar o maior sucesso comercial possível em
ambos os lado do Atlântico (#1 nos
EUA e #3 em Inglaterra).
A
abrir o álbum, o tema White Room,
uma colaboração entre Jack Bruce e Pete
Brown («Penso que o Jack tinha a música e eu a
ideia.»[13]), a partir de um poema deste último que se estendia
ao longo de oito páginas e que, segundo o poeta, tinha sido escrito «(...) quando estava a viver naquele quarto branco. Na altura
estava a começar a minha vida de novo. Eu tinha algum dinheiro da composição de
canções mas ainda estava a beber e a drogar-me. Foi no meu quarto pintado de
branco que eu tive a terrível experiência com droga que me fez querer parar com
tudo.»[14] Numa outra declaração, ele é um pouco mais explícito:
«Era um quarto pequeno, próximo das traseiras da Baker
Street, no centro de Londres, num apartamento de alguém. Mesmo ao lado de um quartel
de bombeiros e os alarmes continuavam a tocar, precisamente quando eu estava a ter
uma viagem desagradável.»[13] «Eu estava bêbado. Mas eu comecei a conversar com essas
coisas [NA: refere-se
a uns pertences que ele, uns dias antes, tinha retirado da cave e às próprias mobílias
do quarto.]. A minha namorada da época passou-se
completamente.»[14]
A
canção abre com a guitarra de Clapton num feedback
propositado, acompanhada por uma viola tocada e, posteriormente, incorporada
pelo produtor Felix Pappalardi numa
duplicação da intervenção de Clapton e no ritmo marcado, desde o princípio,
pela batida africanista de Ginger Baker
atacando uns clássicos tímpanos europeus até que, mudando-se para a bateria,
aos 0:22, marca a entrada para o Bruce. Uma
das desde sempre muitas queixas de Baker contra Bruce, envolve estes 23 segundos: «Mas eu fiz coisas como o ritmo em bolero a 5/4 no início de
‘White Room’. A introdução original era em 4/4 e eu coloquei lá um bolero com
tímpano. Eu não estou a dizer que escrevi a música inteira – não de todo. Mas
se eles me tivessem dado cinco por cento, eu teria ficado feliz.»[15] ou dez
anos mais tarde: «Toda a introdução era em 4/4 e eu transformei-a
num bolero em 5/4, o que imediatamente fez a música, mas nem sequer um obrigado
por isso. O Jack chegou mesmo a dizer que ele escreveu a introdução em 5/4, o que
é absolutamente falso.»[16] A
vocalização de Bruce
embora poderosa não consegue deixar de demonstrar os seus limites, principalmente
nos falsetes, enquanto o seu contributo com o baixo, quando enquadrado no
universo pop, é um assumido acto de inconformismo
para com o então habitual papel reservado aos baixistas: ele não se limita a
repetir ad finem os mesmos acordes, a
cada intervenção ele parte para uma nova solução. Quanto a Clapton, (con)vencido pelo furacão Jimi Hendrix, adopta o wah-wah com efeitos que acabam por ser
determinantes no sucesso da canção... o que seria dela sem aqueles solos?
A
gravação do tema base é feita a 6 de Julho de 1967, nos IBC Studios de Londres, com o engenheiro Adrian Barber e o produtor Felix
Pappalardi do outro lado do estúdio.
Dois meses depois, no dia 17, e já com algum trabalho de produção feito
em Londres, mudam-se para os Atlantic
Studios de Nova Iorque, onde trocam de engenheiro – Tom Dowd aparece assim, pela primeira vez, nos créditos das
gravações dos Cream. Nas sessões de Fevereiro de 1968 (entre os
dias 10 e 20), Eric
Clapton aparece com o wah-wah. A 17 de Junho, a canção está pronta para
passar a disco tendo entrado para a lista das faixas a serem alinhadas para o Wheels of Fire. Posteriormente viria a ser escolhida para o
lado principal do single a ser
extraído do duplo álbum que viria a ser comercializado nos EUA, em princípios
de Outubro. A 3 de Novembro atinge o #6 do Billboard Hot100, aonde
ficará por três semanas.
As etiquetas do single, nos
EUA e no RU
White Room
(Bruce-Brown)
Cream
In the white room with black curtains
near the station
Blackroof country, no gold pavements,
tired starlings
Silver horses ran down moonbeams in your
dark eyes
Dawnlight smiles on you leaving, my
contentment
I'll wait in this place where the sun
never shines
Wait in this place where the shadows run
from themselves
You said no strings could secure you at
the station
Platform ticket, restless diesels,
goodbye windows
I walked into such a sad time at the
station
As I walked out, felt my own need just
beginning
I'll wait in the queue when the trains
come back
Lie with you where the shadows run from
themselves
At the party she was kindness in the hard
crowd
Consolation for the old wound now
forgotten
Yellow tigers crouched in jungles in her
dark eyes
She's just dressing, goodbye windows,
tired starlings
I'll sleep in this place with the lonely
crowd;
Lie in the dark where the shadows run
from themselves
«‘White Room’ é a obra-prima de estúdio dos Cream. Não é
coincidência que ela seja uma música de Bruce-Brown apresentando uma forte
vocalização de Bruce e uma poderosa parte de baixo que se eleva a novos níveis
de inspiração de improvisação.»[17]
«A abertura fora de comum (num tempo 5/4) leva-nos a um
outro hino do rock clássico que nos mostra, em//microcosmo, as subtis invenções
de Jack como baixista. Ele toca uma simples passagem no final do primeiro
verso, mas em vez de apenas a repetir no final de cada subsequente verso - como
a maioria dos baixistas o faria - ele usa-a como um ponto de partida para as
miríades variações, com a sua vocalização, sobre um tema que parece um
mecanismo de ‘chamada e resposta’ dos clássicos blues. As respostas mudam à
medida que o diálogo avança, com o wah-wah de Eric a ser elevado acima do topo.»[18]
Das
várias versões que consegui reunir e que disponibilizo, gostaria de realçar a dos
X-Ray Connection
incluída no seu (suponho eu!) único álbum de 1984 e a de Jack Bruce, em Shadows In The Air, de Julho de 2001;
em ambos os casos, pela evidente nova roupagem dada ao tema, embora no segundo,
também pela natural curiosidade de saber como três décadas depois o seu autor
embrulha com outros argumentos, uma das suas obras-primas. As restantes covers (se o termo faz algum sentido
Hoje!!!) limitam-se a ser umas mais do que outras, agradáveis cópias do
original.
Ginger Baker possuído por
espíritos malignos. 1966
____________________
[1] WELCH, Chris. “Stepping Out”. Cream: The
Legendary Sixties Supergroup. A Balafon Book: London. 2000. p. 70;
[2] CLAPTON, Eric. “Cream”. Clapton: The
Autobiography. Broadway Books:
New York. 2007. p. 66;
[3] CLAPTON, Eric. “The Yardbirds”. Op. cit. p.
48;
[4] SHAPIRO,
Harry. “Yak La Bruze”. Jack Bruce: Composing Himself. A
Genuine Jawbone Book: London. 2010. p.
71;
[5] BAKER, Ginger. “The Graham Bond Organisation”. Hellraiser.
John Blake Publishing Ltd: London. 2010. p.
75;
[6] WELCH, Chris. “Blue Condition”. Op. cit. pp.
33/34;
[7] BAKER, Ginger. “Cream”. Op. cit. p. 97;
[8] CLAPTON, Eric. “Cream”. Op. cit. p. 65;
[9] SHAPIRO, Harry. “Band Of Brothers”. Op. cit. p.
87;
[10] WELCH,
Chris. “Stepping Out”. Op. cit. p. 85;
[11] WELCH,
Chris. “As You Said”. Op. cit. p. 92;
[12] WELCH,
Chris. “As You Said”. Op. cit. p. 90;
[13] WELCH,
Chris. “As You Said”. Op. cit. p. 93;
[14] WELCH,
Chris. “As You Said”. Op. cit. p. 96;
[15] WELCH,
Chris. “As You Said”. Op. cit. p. 94;
[16] BAKER,
Ginger. “Disraeli Gears”. Op.
cit. p. 108;
[17] WELCH,
Chris. “Strange Brew”. Op. cit. p. 56;
[18] SHAPIRO,
Harry. “Those Were The Days”. Op.
cit. pp. 105/106.
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