Por razões várias, umas mais claras do que outras, no início da década de 70 começou a surgir uma vaga de cantores-autores, mais ou menos ligados ao Folk, mais ou menos intimistas, mais ou menos com problemas existenciais...
James Taylor que em finais de 1968, tinha lançado por intermédio da etiqueta dos Beatles, a Apple, o seu quase desconhecido álbum homónimo viria a, em Fevereiro de 1970, com o sucesso de Fire And Rain, single extraído do álbum Sweet Baby James e aonde ele “relata” toda uma série de experiências intimas, marcar essa tendência que se tornaria dominante na Pop Music de um determinado período. É assim que sobressaem Carole King com o seu álbum Tapestry, aonde pontua You’ve Got A Friend, e Carly Simon que viria a ser esposa de Taylor e cuja primeira notória ligação amorosa, e que daria origem ao tema-título do seu segundo álbum lançado em finais de 1971, Anticipation, teria sido com o inglês príncipe-de-todos-os-males-do-mundo Cat Stevens. Stevens já era um nome conhecido e com alguns sucessos comerciais (Matthew & Son e The First Cut Is The Deepest, em Março e Dezembro de 1967) quando foi obrigado a fazer um hiato na sua carreira para ser internado num hospital por ter contraído tuberculose. Segundo ele, esta sua reclusão tê-lo-á obrigado a pensar na Vida e a procurar um novo sentido para ela. Em 1970 lança Mona Bone Jakon (cujo título se refere ao nome fictício que dava ao seu próprio pénis) aonde já era evidente essa mudança. Durante dois anos, ele será o príncipe dos que têm o mundo centrado no seu próprio umbigo.
Em Setembro de 1969, pela prestigiada Island Records, sai Five Leaves Left, um álbum de um jovem de voz melodiosa e grave mas carregada de melancolia, chamado Nick Drake, e que se fazia acompanhar pela sua guitarra acústica e por um grupo de apoio que incluía alguns dos instrumentos da nova Folk Music, (guitarra eléctrica e uma secção rítmica composta por baixo, bateria e, essencialmente, congas) e por uma secção “clássica” (piano e instrumentos de cordas) que servia para dramatizar ainda mais, a mensagem pronunciada pelas suas próprias palavras...
Time has told me / You’re a rare rare find / A troubled cure / For a troubled mind
Capa e contra-capa de Five Leaves Lefte pacote da Rizla com mortalha de aviso “only 5 leaves left”
Drake provinha de uma família da classe média rural com ligações ao colonialismo britânico na Ásia, de uma zona do interior-centro de Inglaterra chamada Warwickshire, aonde ele irá ter um crescimento “normal”: na escola era tido por um jovem inteligente com queda para o desporto mas que não fazia muitas amizades devido ao seu carácter autoritário. Em casa, por influência dos pais, dedicava muito do seu tempo livre à música.
Com a entrada na adolescência começou a demonstrar um certo desinteresse pelas actividades académicas e a virar-se cada vez mais para a música – para além de trocar o atletismo e o rugby pela banda da escola, em paralelo formou com uns colegas, um grupo que se dedicava a covers... mas rapidamente foi corrido dele.
Em 1966 consegue uma bolsa para estudar Literatura Inglesa na Universidade de Cambridge mas adia o seu ingresso para frequentar a partir de Fevereiro de 1967, um curso de Verão em França, na Universidade de Aix-Marseille, aonde viria a tornar-se um consumidor assíduo de marijuana e esporádico de LSD. No fim do verão, está de regresso a Inglaterra aonde entra em Cambridge mas o seu alheamento pela vida universitária – tal como para muitos outros – era total, preferindo antes concentrar-se na música, ouvindo-a e tocando-a, sempre que possível. Ian MacDonald, em Exiled from Heaven: The Unheard Message of Nick Drake, por conhecimento próprio, descreve assim esses tempos: «The stately air was fragrant with marihuana and no one seemed to be doing a stroke of work. (…) In every half-hip college room, hirsute youths lolled in drug-liberated converse while fey girls curled worshipfully at their feet or came and went with mugs of scented tea. When the holy relics of the moment weren’t revolving on the turntable, out came the acoustic guitars.»(1)
E é assim que Nick é apanhado numa das suas actuações por Ashley Hutchings, o baixo dos Fairport Convention, e é levado até Joe Boyd, o patrão de uma companhia de caça-talentos ligada à Island Records, e, em pouco tempo, lhe é proposto gravar um álbum ao que, segundo Boyd, terá respondido apenas com um «Oh, well, yeah. Okay.»
Entre Five Leaves Left e Bryter Layter, o seu segundo álbum, publicado em Novembro de 1970, Nick pouco mais fez do que desistir do seu curso e mudar-se para Londres com o pretexto de se dedicar à carreira musical, mas aonde acabaria por levar um modo de vida que o levaria à destruição da sua própria pessoa, recusando um convívio normal com mantinha laços de parentesco ou amizade e aceitando passivamente a deterioração da sua condição psíquica. Qualquer tentativa por parte da Island Records na promoção da sua carreira era imediatamente condenada ao fracasso: as entrevistas eram arrancadas à força e aos entrevistadores só lhes restava ficar com as poucas resposta monossilábicas obtidas. As poucas actuações que aceitava cumprir geralmente acabavam em jam sessions sem qualquer nexo ou brilho, aonde muitas das vezes nem cantava, e só assim era quando ele não se escapava a meio...
Graças à habitual tendência protectora de Chris Blackwell, o patrão jamaicano da Island, para com seus contratados evitava o que o resto do pessoal da etiqueta mais desejava: pô-lo a andar!
As vendas registadas por esses seus dois trabalhos, apesar de algumas críticas moderadamente favoráveis por parte da imprensa especializada e da admiração imoderada do melhor DJ de sempre, John Peel, que o passava entre rasgados elogios, nunca ultrapassaram o número de alguns poucos milhares de exemplares e o desapontamento e frustração sentidos por ele iria, gradualmente, desencadear uma depressão que agravaria a sua condição psíquica ao ponto de ele próprio ter aceite procurar tratamento médico. Depois de um breve período em casa dos pais, regressa a Londres aonde a sua existência se limita a dormir em casa de conhecidos para desaparecer uns dias depois sem qualquer explicação, umas actuações no mais completo anonimato apenas para amealhar o suficiente para a compra de «unbelievable amounts of cannabis»(2) que, segundo o seu amigo Robert Kirby, consumia, e um completo desapego pelo seu aspecto quer em termos de roupa, quer em termos de higiene.
Mas eis que em Outubro de 1971, depois de uns dias passados em Espanha numa casa de férias de Chris Blackwell, ele entra em contacto com John Wood no sentido de o ter como produtor do seu novo trabalho. Wood, com alguma dificuldade, consegue uns períodos livres no Sound Techniques Studios mas a horas tardias o que para Nick não representava um problema. Em apenas algumas horas em duas noites, Nick e Wood gravam o que viria a ser aquele que hoje é considerado o seu melhor trabalho: Pink Moon.
«He arrived at midnight and we started. It was done very
quickly. After we had finished, I asked him what I should
keep, and he said all of it, which was a complete contrast to
his former stance. He came in for another evening and that
was it. It took hardly any time to mix it, since it was only his
voice and guitar, with one overdub only. Nick was adamant
about what he wanted. He wanted it to be spare and stark,
and he wanted it to be spontaneously recorded.»(3) – recorda
John Wood numa entrevista dada a Connor McKnight, da
revista Zig Zag.
Linda Thompson que então era a namorada de Joe Boyd,
de uma visita que fez ao estúdio lembra-se de que «He was
in a dreadful state, totally incommunicado. I’m surprised he
didn’t throw me out. He didn’t speak to John Wood either.»(2)
Capa do LP
Pink Moon são onze temas (num total de cerca de vinte e oito minutos) aonde apenas a facha-título inclui outro “instrumento musical”, o piano, que não a voz e a guitarra acústica de Nick, e aonde apenas Horn é um instrumental, sendo as restantes fachas veículos mágicos para as mensagens enigmáticas mas densas de uma profunda desilusão, desta espécie de bardo druida – o simbolismo dos elementos ligados à natureza é uma constante como se o seu vocabulário fosse limitado ao Universo.
Magia é o que Nick consegue fazer com as cordas da sua guitarra acústica quase mal afinada (não creio que se possa dizer desafinada...) e a sua voz captada como se tivesse a contar só para nós todas as suas observações de ser dotado de uma sensibilidade anormal, do mundo em que vivia. Na desilusão que prevalece, momentos de esperança ainda existem aqui (Take your time and you’ll be fine/(…) It happened before, em Things Behind The Sun) e ali (And now we rise/ And we are everywhere/ And now we rise from the ground, em From The Morning) mas no geral este é um álbum para se ouvir ao crepúsculo, acompanhando a escuridão crescente entre as quatro paredes de um quarto que se atraem fazendo dele aquela prisão em que vivemos.
Pink Moon é de uma musicalidade incrível, reforçada pela intervenção do piano, e na voz de Nick nada indica o que vem a seguir. Um tema verdadeiramente Pop. Place to Be é o primeiro sinal do que aí vem quando 14 segundos depois da introdução da guitarra, surgem as primeiras palavras (When I was young, younger than before/ I never saw the truth hanging from the door/ And now I’m older see it face to face/ And now I’m older gotta get up, clean the place), e a toada se torna repetitivamente triste. Road, com algo de música africana, algures do Niger ou do Mali, e o seu curto poema (influências da poesia Zen?) é, quanto a mim, o momento mais depressivo de todo o álbum, se excluirmos Horn, aonde a ausência de palavras (voz) apenas ajudam a dramatizar o ambiente construído, de certeza, a partir de uma melodia norte africana. Wich Will é um poema de amor, de um amor feito de desilusão e impossibilidade (Which will you hope for?/ Which can it be?/ Which will you take now?/ If you won’t take me). Things Behind The Sun, que encerra o lado A do disco, mesmo com os seus momentos de esperança é notoriamente triste. Supostamente escrita algures em 1968 e sobre marijuana, foi preterida nos dois anteriores trabalhos, e repescada agora. Um outro intérprete tê-la-ia escolhido para tema de abertura do lado B. Nick optou antes por Know, aonde julgo descobrir o poema mais pessoal de todos os que podemos encontrar neste álbum. Que melhor maneira há de percebermos o que lhe ia na alma do que ouvir a sua indiferença (Know that I love you/ Know I don’t care/ Know that I see you/ Know I’m not there)? A guitarra de Nick, aqui, chega a ser incomodativa na sua notória falta de afinação. Parasite é uma preocupação com o que o mundo exterior pensa dele (Take a look you may see me on the ground/ For I am the parasite of this town/ And take a look you may see me in the dirt), algo de extraordinário em Drake. Free Ride é demasiado pessoal (sobre uma amiga – provavelmente o que ele teve mais perto de ser uma namorada – Sophia Ryde) para a sentirmos como nossa mas é evidente que podemos descobrir nela algo de universal, como a futilidade (All of the pictures that you keep on the wall/ All of the people that will come to the ball). Harvest Breed é o desespero da solidão (Falling fast and falling free/ You look to find a friend) e a hipótese da morte (This could just be the end). E para terminar, Nick opta por From The Morning, a canção mais optimista de todo o álbum (And now we rise/ And we are everywhere/ And now we rise from the ground).
Conta a lenda que Nick terá pegado na bobine com a gravação e corrido para os escritórios da Island Records aonde a deixou na recepção aonde ela terá sido descoberta muito mais tarde, mas a verdade é que, de acordo com Trevor Dann, ele pedido na recepção para falar com Blackwell e este desceu para o receber, e depois de umas breves palavras de ocasião – recorda o patrão da Island – «I asked him what it had cost and he said 500 or so pounds so I gave him the money there and then.»(2)
Para a capa do disco foi contratado o fotógrafo Keith Morris que ainda chegou a fazer uma série de fotos mas que apresentavam um Nick impossível de fazer parte da capa de um disco. Foi então escolhida uma pintura de Michael Trevithick, com a devida aprovação de Nick.
A 25 de Fevereiro de 1972, o álbum é posto à venda. Um novo fracasso comercial e a imprensa especializada, praticamente o ignora...
“The album consists entirely of Nick's guitar, voice and
piano and features all the usual characteristics without ever
matching up to 'Bryter Layter'. One has to accept that
Nick's songs necessarily require further augmentation, for
whilst his own accompaniments are good the songs are
not sufficiently strong to stand up without any embroidery
at all. 'Things Behind The Sun' makes it, so does
'Parasite' – but maybe it's time Mr. Drake stopped acting
so mysteriously and started getting something properly
organised for himself." – J.G., Sounds, March 25, 1972;
“His music is so personal and shyly presented both
lyrically and in his confined guitar and piano playing
that it neither does or doesn't come over. Drake is a fairly
mesterious person, no-one appears to know where he
lives, what he does – apart from writing songs – and
there is not even a chance to see him on stage to get
closer to his insides. In places he is a cult figure, and
among the new younger sixth form and college audience
there are pockets that go overboard to catch the latest
glimmer of news that moves along the verbal news
meanderings. The more you listen to Drake though, the
more compelling his music becomes – but all the time it
hides from you. (…) It could be that Nick Drake does
not exist at all.” – MP, Melody Maker, May 1, 1972.
A 25 de Novembro de 1974, Nick Drake é encontrado morto na residência dos pais, pela sua mãe. A autópsia indicará excesso de amitriptilina, um antidepressivo que lhe tinha sido receitado.
De então para cá, a sua popularidade tem vindo a crescer...
«Drake’s stance vis-à-vis the river-world is almost precisely
analogous with the general sixties countercultural view of
‘straight’ society. The Buddhistic be here now formula for
enlightenment was familiar to those in the counterculture
who’d moved from psychedelic drugs to Eastern mystical
systems. In this sense, Drake is very much a child of his time
– the essence of the late sixties spiritual revolt in its purest
form – and he can’t be fully understood without seeing his
work in historical context.» – Ian MacDonald(1).
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(1) MacDonald, Ian. The People’s Music, 2003;
(2) Dann, Trevor. Darker Than the Deepest Sea: The Seach for Nick Drake. 2006;
(3) Humphries, Patrick. Nick Drake: The Biography. 1999.
Um excelente programa sobre Nick Drake (Remembering Nick Drake and his Music) pode ser encontrado na página City Arts & Lectures da FORA.tv, Inc. (“FORA.tv”).