Marvin Gay, Sr. – sim, Gay sem o “e” no fim que esse foi acrescentado pelo filho por razões que julgo serem evidentes… – era um daqueles pais que misturava ignorância com religião e prolongava a tradição como a tinha recebido: as regras que ditava eram para serem cumpridas sob risco de punição física, e isso acontecia frequentemente.
«O pai dele era um pastor pentecostal, um disciplina-
dor virtuoso.» – Ben Fong-Torres(5 p.14)
«(...) o reverendo Gaye abriu [a porta], de Bom Livro
na mão. Conversámos durante horas. Fiquei fascinado
com a delicadeza dos seus dedos e a extensão do seu
conhecimento bíblico. Fisicamente, era diminuto mas
vigoroso. (...) Ele falou do seu amor a Jesus e aos ju-
deus. (...) – intenso, articulado, com autoridade.»
– David Ritz(4 p.21)
«Pai e filho brigaram com frequência durante a juven-
tude de Marvin Jr. “Marvin disse-me que nunca teve
do seu pai o amor que ele queria”, disse [o advogado
Curtis] Shaw. “Ele disse-me, ‘Ele não aceita o meu a-
mor’”» – Ben Fong-Torres(5 p.16)
Gay, Sr. dizia que amava o filho. A mãe, Alberta, não se lembrava de que assim fosse – ao jornalista/escritor David Ritz, ela confessaria: «O meu marido nunca quis o Marvin, (...) nunca gostou dele (...) e o que era pior, era que queria também que eu não amasse o Marvin. O Marvin não era muito crescido quando se apercebeu disso.»(11 pp.6/7) – e Gaye, Jr. sempre dirá que amava o pai e que lhe agradecia, acima de tudo, tê-lo introduzido no “amor de Jesus”.
«“Uma das razões porque amo o meu pai”, disse Mar-
vin num dos seus momentos de pregação, “é porque ele
me ofereceu Jesus. Ele fez Jesus viver em mim, e essa é
razão suficiente para lhe estar agradecido para o resto
da minha vida.”» – David Ritz(11 p.151)
Mas nos momentos difíceis acabaria por culpar Gay, Sr. e o fundamentalismo religioso da sua igreja, por todos os problemas mais íntimos que lhe infernizavam a existência de adulto: os constantes episódios de impotência sexual que o obrigavam a recorrer a práticas sexuais “anormais” e que mais tarde o iriam levar à então “droga do sexo”, a cocaína.
«A Anna ensinou ao Marvin certos truques – truques com
o seu corpo, truques de sexo» – Alberta Gay(11 p.281)
Depois de cumpridas as “obrigações” de gravar uma banda sonora para mais um filme desse intragável género cinematográfico que foi a Blaxpoitation – Isaac Hayes e Curtis Mayfield, dois dos seus mais “perigosos” (e originais) concorrentes tinham gravado com sucesso bandas sonoras para dois filmes desse género, respectivamente, Shaft e Super Fly, e ele não podia perder o andamento...) com Trouble Man (Dezembro de 1972), e de ter iniciado, contrariado, um álbum de duetos “motown sound” com Diana Ross que, rapidamente, se tornou em sessões de gravação separadas depois de ele se ter recusado a deixar de fumar marijuana no estúdio (Gordy ainda interveio pedindo-lhe que atendesse ao facto de que a “princesa da Motown” receava perder a criança ao que Marvin lhe respondeu que se o fizesse era ele que perdia a inspiração) – Diana & Marvin (Outubro de 1973) –, Gaye regressa aos estúdios a pensar no seu ego humilhado...
A capa do álbum Trouble Man
Let’s Get It On, composto e gravado entre Fevereiro e Julho, com muito material recuperado do arquivo, voltou a contar com os melhores músicos de estúdio da Motown durante as sessões quer em Detroit, quer nos novos estúdios em Los Angeles, assim como com a preciosa colaboração de David Van DePitte (um reconhecimento do seu extraordinário trabalho em What’s Going On) e de Ed Townsend (como co-produtor e co-autor dos temas do lado 1 do disco). Publicado em finais de Agosto, voltou a trazer Gaye para as bocas do mundo. Não tão bem recebido como What’s Going On, acabaria no entanto por receber críticas altamente favoráveis. Em termos de vendas, atingiria o #2 das tabelas nacionais e o #1 nas tabelas afro-americanas.
«(...) ele continua a transmitir o mesmo grau de inten-
sidade, enviando-nos mensagens próximas do cósmico
enquanto eloquentemente enriquece as, por vezes, sim-
plistas letras. Mas isso não deve parecer surpresa vindo
do homem que canta “She makes my day a little brigh-
ter/ My load a little bit lighter/ She’s a wonderful one”
de um modo que nos torna difícil recordar se ele está a
cantar sobre Deus ou a mulher – e mesmo se ele sente
que haverá uma qualquer diferença.» – Jon Landau
(12 p.74)
«Gaye expõe o seu manifesto nas notas da capa do dis-
co: “Faça o seu sexo, pode ser muito excitante se tiver
sorte. Espero que a música que aqui apresento o faça
ter sorte.” Então ele fez um disco de ambiente-sedução
perfeito.» – Gavin Edwards(13 p.68)
Ao fim de 37 anos a ouvi-lo, a tentação é a de reduzir o álbum ao excepcional tema que lhe dá o título. Let’s Get It On é uma canção sem paralelo na música pop dos EUA – creio que ainda hoje não há qualquer outro tema que atinja o seu nível de sensualidade. Dengoso, desde a introdução da guitarra e da voz de Gaye, dificilmente haverá quem escape à magia do seu ritmo. Marvin achava o lado 1 o mais apropriado para induzir ao sexo [diria ele: «“Eu gosto do lado do ‘Keep Gettin’ It On’.”»(6 p.43)]. Sim, se o tema-título é definitivo no introduzir de um ambiente propício à sedução, os restantes são a sua perfeita continuação. Please Stay (Once You Go Away) e If I Should Die Tonight prolongam e reforçam esse ambiente – este último tema então é sublime com a sua roupagem a anos 50, num extraordinário trabalho de orquestração de David Van DePitte – e não creio que a reposição de Let’s Get It On, com Keep Gettin’ It On, seja inocente no seu propósito. Claro que hoje não há o óbice de, como no tempo em que ele foi publicado, se ter de virar o disco para se ouvir a nostalgia romântica de Distant Lover ou o apelo sensual (pornográfico?) de You Sure Love to Ball e se quando chegar a Just to Keep You Satisfied ainda tiver o domínio necessário para lhe prestar alguma atenção... é porque o álbum não lhe diz mesmo nada – ouça antes Scorpions! Este é um álbum adulto sobre sexo e amor feito por um homem em dor.
«“Quando ouvi pela primeira vez a canção na rádio,”
o pai de Marvin ri-se “Eu telefonei a Marvin a dar-lhe
os parabéns pela música, mas também lhe disse, Por
favor, por favor, não vás mais longe. É suposto seres o
filho de um ministro.”» – Tim Cahill(6 p.42)
«Let’s Get It On era o prisma pessoal de Marvin so-
bre a intersecção do amor, paixão, abandono, roman-
ce e as dimensões físicas desses sentimentos. (...) Es-
te disco, cheio de reflexões de verões alegres juntos
e de bizarros momentos no escuro, é um testamento
da visão obsessiva de Marvin pela sexualidade, a sua
vontade de despir-se em público e perante Deus.» –
Nelson George(14 p.7)
Durante a gravação do álbum, Gaye conhece aquela que viria a ser a sua segunda mulher: Janis Hunter, uma adolescente de dezassete anos – quando ele já ia nos trinta e três! – que praticamente terá sido empurrada pela sua mãe para os braços do cantor [«a mãe da rapariga “encorajou a relação” disse Gaye» – David Krajicek(15 p.13)]. Um ano depois estava grávida e deixava o liceu. A sua ligação a drogas já na altura era considerável e Gaye, por sua vez, começara a algum tempo a consumir cocaína – a paranóia rapidamente se instalará entre eles. Se com a Anna ele assumia uma atitude quase submissa, com Janis passaria ao papel de “senhor”: a violência doméstica passara a ser normal e para além disso, obrigava-a a ter aventuras com outros homens, e se ela não lhe obedecesse espancava-a, e se ela o fazia exigia-lhe relatos pormenorizados do que tinha acontecido, provocando-lhe uma profunda humilhação.
«A Jeanne Gay disse, “O Marvin não apenas pedia à
Jan para ter casos, ele ficava zangado com ela quan-
do ela se recusava a obedecer-lhe e não lhe contava
as histórias dos casos que ele queria que ela tivesse.”
A sua mãe acrescentou, “Ele queria que a Janice fos-
se com outros homens. Então, sofria com as consequên-
cias. Ele queria sofrer.”» – David Krajicek(15 p.13)
«(…) os dois discos tomados em conjunto, dramatizam
rigidamente o que Gaye via como o conflito central da
sua própria vida: era ele o filho do pastor que queria
ser uma força positiva no mundo, ou um servo pecami-
noso do diabo?» – Gavin Edwards(13 p.68)
AMO MARVIN GAYE.
ResponderEliminarObrigado por ter sido o(a?) primeiro(a) a comentar no meu blogue - seja bem-vindo(a).
EliminarEvidentemente, eu também amo o Marvin
Infelizmente viveu muito pouco pra tanto talento.
ResponderEliminarSim, infelizmente viveu muito pouco... mesmo e apesar de o talento, nos seus últimos anos de existência, já não ser tão evidente.
EliminarObrigado por comentar