Em 1977 consegue finalmente chegar a um acordo com Anna sobre as condições para o divórcio, e um ano depois, em Novembro, declara-se falido – em tribunal acabará por comprometer-se a saldar as suas dívidas fiscais através de uma prolongada digressão que o levará à Inglaterra e ao Japão. No regresso, actua no Hawai e por lá se deixa ficar, vivendo numa carrinha e levando uma existência de completa dependência da cocaína.
«“Eu estava basicamente a viver na praia,” relembra
Marvin. “(...) Eu precisava de estar longe do mundo
para recuperar as minhas forças. Isso foi apenas uma
fuga tão boa como outra qualquer.” (...) “A rotina de
Marvin por lá,”, recorda Ken, “foi realmente algo.
Depois de se levantar pela manhã, ele tomava uma
boa dose do pior whisky, então fumava um charro bem
grosso, e em seguida, cheirava um pouco de coca. E
era assim que ele apenas começava o dia.”» – David
Ritz(11 pp.265/266)
Completamente sozinho – Janis separara-se dele em meados de 1979 depois de uma tentativa de o trazer de volta ao continente que acabaria por terminar com ele a apontar-lhe uma faca ao coração – e perseguido pelas autoridades por causa do não pagamento das suas obrigações fiscais, tenta suicidar-se mas não o consegue. Num último esforço para dar um novo rumo à sua vida, muda-se para a Europa. Primeiro Londres, mas rapidamente regressa aos velhos hábitos. A situação deteriora-se com o divórcio de Janis, em Fevereiro de 1981, e é então que um amigo, Freddy Cousaert, lhe oferece uma estadia em Ostend, uma pequena cidade costeira belga, aonde acabará por levar uma existência pacata e saudável, recuperando assim o seu ego ferido.
«(…) ele encontrou consolo no ar salgado do mar e
trabalhou para regressar à sua boa forma, correndo
ao longo da praia e praticando boxe numa academia
local. Ele começou a trabalhar num álbum de regres-
so, num estúdio próximo, que se tornaria num suces-
so internacional e, o mais importante, ele parou com
o uso de drogas.» – Gregory Katz(16 p.2)
«Vim para a Bélgica não para me retirar mas para
reagrupar as minhas armas para um novo assalto.»
– Marvin Gaye(4 p.23)
Em 1982 deixa a Motown e assina com a Columbia Records. Pouco depois inicia uma digressão por Inglaterra e, na sequência dela, uma pelos EUA, e é o regresso à cocaína e à loucura.
«A digressão terminou em Agosto de 1983. Em No-
vembro, Marvin mudou-se para a casa dos pais (...).
Tentou também resistir à sua dependência de drogas.
“Ele viu o que aquilo lhe fizera, como ele ficou pa-
ranóico”, disse Banks. “A sua mãe e todos os outros
– e até mesmo ele – se assustaram com todos os tra-
ficantes de drogas em meados de Novembro.» – Ben
Fong-Torres(5 p.16)
Marvin na época
O regresso a casa irá ser-lhe fatal – o estilo de vida que levava, colidia com os princípios do seu pai que se continuava a reger pelo mais básico fundamentalismo religioso e moral...
«Marvin não tinha vivido na mesma casa com o pai
durante um quarto de século. Além da herança de in-
fância e os conflitos sobre o uso de drogas, sexo e
pornografia, (...) outras questões agudizavam o rela-
cionamento tenso entre eles. (...) Apesar dos homens
conseguirem evitar-se um ao outro, maior parte do
tempo, a tensão física era palpável – tanto que Mar-
vin Sr. disse à sua filha Jeanne, “Se ele me toca, ma-
to-o.”» – David Krajicek(15 p.21)
Um dia antes do seu quadragésimo quinto aniversário, a 1 de Abril de 1984, Marvin Gaye, Jr. é morto à queima roupa por Marvin Gay, Sr.
«“Eu sabia quando ouvi, que era a vontade de Deus.
Eu pensei sobre isso, que estranha e ironicamente, a
própria pessoa que o ajudou a vir a este mundo... Deus
teve essa mesma pessoa para o tirar deste mundo. Há
provavelmente alguma coisa nisso.”» – Anna Gordy
(5 p.16)
Depois de Let’s Get It On, Marvin virá a publicar mais quatro álbuns de originais: I Want You (1976), Here, My Dear (1978), In Our Lifetime (1981) e Midnight Love (1982); todos eles fortemente influenciados pela música funk que, na altura, se aproximava indistinguível do seu parente rítmico mais pobre, o disco, o que levaria alguém a classificá-los como música para o fim das noites de sábado. Na minha opinião, os trabalhos mais honestos serão os dois do meio e por esta ordem:
Here, My Dear é, seguramente depois de What’s Going On, o trabalho mais “sério” de Marvin Gaye – pelo menos no que toca ao seu “propósito”. Nascido do acordo judicial de divórcio com Anna Gordy, Marvin reflecte nele uma série de pensamentos e sentimentos em torno da sua vida amorosa, como qualquer comum mortal, mas não só – há também, por exemplo, abordagens à sua fé religiosa e à relação dela com os seus “pecados” (a dependência da coca e todas as obsessões com sexo), em Time To Get It Together, mas também há a vida numa futura era espacial com A Funky Space Reincarnation. O seu grande defeito é, quanto a mim, a sua extensão: se tivesse sido reduzido a um único disco poderia ter sido uma sua terceira contribuição marcante para a música pop. A sua duração é tanto mais estranha quanto o seu propósito inicial, mesquinho, de fazer um álbum “preguiçoso e mau”... para que a sua ex-mulher (Anna) não usufruísse do seu trabalho.
«Desprezado pela crítica e largamente ignorado pelo
público, a suíte de dois LPs é no entanto, incrivelmente,
um trabalho bem sucedido, um monólogo interior com-
plexo em que a sensibilidade e o alcance de, digamos,
Scenes From A Marriage, de Ingmar Bergman, é tradu-
zida para música soul.» – David Ritz(4 p.23)
In Our Lifetime que acabará por ser publicado contra a sua vontade, provocará a sua ruptura final com a Motown – supostamente, para além de umas misturas diferentes e a inclusão de uma música não aprovada por ele (Far Cry), havia ainda a questão do título não ter um ponto de interrogação no seu final, como ele o exigia. Evidentemente que é um álbum “inacabado”, como Marvin várias vezes o afirmou, mas mesmo assim superior, na sua diversidade sonora ou procura de novos caminhos, a I Want You. Praise, dedicada a Stevie Wonder, e Life Is For Learning são dois temas agradáveis e que, como abertura do álbum, prometem algo mais do que se virá a verificar. Love Me Now Or Love Me Later, a segunda música do lado dois do disco, é um excelente exercício lírico e vocal com uma guitarra blues não menos excelente – o melhor tema do LP. Heavy Love Affair, um funk com uma batida contagiante mas sem concessões, termina, quanto a mim, este álbum.
«In Our Lifetime é uma montagem densa – por vezes de
tirar o fôlego – de temas funk e soul, na qual Marvin
Gaye reflecte sobre arte, amor, karma, e o Armagedão.
Como em todos os seus trabalhos de estúdio desde o de-
finitivo What’s Going On, o tenor fluido que é Gaye tece
através da produção de texturas complexas, a sugestão de
um monólogo interior prolongado.» – Stephen Holden
(17 pp.59/60)
«Devemos estar agradecido pela inacabada obra-pri-
ma. Embora as canções estejam incompletas, elas do-
cumentam o regresso de Marvin às preocupações espi-
rituais de What’s Going On. (...) “In Our Lifetime” re-
nente. (...) A ilustração da capa, idealizada pelo can-
tor, mostra dois Marvins frente a frente, sentados em
tronos acima das nuvens, enquanto explosões nucleares
devastam a América. Um Marvin tem asas, uma auréola
e uma pomba, o segundo Marvin tem chifres e veste o
manto de Satanás. Ele dividido joga uma partida de xa-
drez, tal como Marvin, (...) acreditando que Deus joga
xadrez com o homem.» – David Ritz(4 p.23)
Sobre os restantes dois álbuns apenas gostaria de dizer que se tratam de trabalhos menores com momentos altamente inspirados de “música sexual” (por exemplo, I Want You (Vocal) ou Feel All My Love Inside, de I Want You, e Sexual Healing em Midnight Love), o que não chega para serem considerados no conjunto da obra de Marvin Gaye.
«A música gospel cantava sobre a salvação através
de Deus, a música soul sobre o poder do amor. A-
vançando um passo mais no mundo secular, o dis-
co traduziu “amor” como “sexo”. Em geral, os gran-
des cantores de soul tinham sido capazes de demons-
trar esse ponto. O curandeiro sexual Marvin Gaye
queria que o seu clássico de espiritual sedução “Let’s
Get It On” (também gravada numa versão gospel in-
titulada “Keep Gettin ‘It On”), tivesse seguimento
com uma música a que chamou de “Sanctified Pus-
sy” (felizmente re-titulado “Sanctified Lady” quando
foi finalmente lançado).» – Craig Werner(3 p.208)
«A cocaína, dos quais Gaye foi um importante consu-
midor, é sabido reduzir o amor à luxúria. Daí que
partes da sua produção consistirem não em canções
de amor, mas em faixas de sexo (...). Marvin Gaye ti-
nha uma voz sedutora que vale a pena ouvir mesmo
quando as vocalizações em fiação e os clichés líricos,
efectivamente, cantam sobre nada – o que abrange
uma grande parte da sua carreira. A enaltecida esté-
tica da foda-coca que orienta muito do seu trabalho,
irá captar futuros ouvintes, como decadente ou profé-
tica, dependendo de como a história decorrer.» – Ian
MacDonald(18 pp.40/41)
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(1) Berry Gordy Jr Biography. The Inductees. The Rock and Roll Hall of Fame and Museum, Inc.;
(2) ALETTI, Vince. “The Motown Story: The First Decade”. Rolling Stone, Nr. 82, May 13, 1971;
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(11) RITZ, David. “Divided Soul: The Life of Marvin Gaye”. 2003;
(12) LANDAU, Jon. “Let’s Get It On”. Rolling Stones Nr. 149, December 6, 1973;
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(18) MACDONALD, Ian. “The People’s Music. Marvellous Marvin Reconsidered”. 2003;
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