«Dig it! Primeiro, mataram aqueles porcos,
Depois jantaram na mesma sala com eles.
E até cravaram um garfo no estômago da
vítima!»
- Bernadine Dohrn(1)
1969: as televisões ainda transmitiam imagens da Ofensiva do Tet no Vietname, que se tinha iniciado em finais de Janeiro mas que se prolongara até Setembro de 1968 quando, entretanto, tinha acontecido o famoso Maio de 1968, em França, o assassinato de Martin Luther King e Robert Kennedy, nos EUA, o massacre de estudantes, num México à espera de uns jogos olímpicos aonde os atletas negros dos EUA subiriam ao pódio de luvas negras a cobrirem os punhos fechados. Dos EUA, chegavam-nos imagens actuais das frequentes manifestações contra a participação na guerra da Indochina e da eleição de Nixon, de Praga as do jovem Jan Palach a atear-se em fogo enquanto a sua cidade era tomada por tanques soviéticos, e de Espanha, a da detenção de centenas de estudantes... e da Irlanda do Norte... e do Vietname...
Um mês antes de publicarem Beggars Banquet, mais precisamente em Novembro de 1968, os Rolling Stones regressam aos estúdios para iniciarem a gravação do seu próximo álbum, que viria a ter o título de Let It Bleed – uma espécie de provocação aos Beatles que estavam a gravar o seu “canto do cisne”, Let It Be.
«“Havia uma grande quantidade de cannabis e coisas
do género, a circular (...) na hora do jantar, estas duas
carrinhas apareceram e colocaram uma variedade de
comidas e coisas do tipo que eu nunca vi num estúdio:
costeletas de corneiro, caris, sobremesas classe-A. O
sonho de um fumador de erva!”» – Al Kooper(2)
Gimme Shelter virá a ser escolhida como tema de abertura. A sua gravação terá sido iniciada em 23 de Fevereiro, tendo o grupo retomado-a a 2 de Novembro.
A sua autoria, atribuída à habitual parceria Jagger/Richards é, na verdade, de quase inteira responsabilidade de Keith Richards que a terá composto a pensar num tema de abertura para os próximos concertos do grupo. Há também quem afirme que ela é apenas o resultado de uma guerra interna surgida entre Keith e Mick Jagger, logo após o primeiro começar a desconfiar que a sua namorada, a actriz e modelo Anita Pallenberg, tinha tido um caso com Mick, facto que ela ainda hoje nega.
Por curiosidade: Anita entrou no circulo Rolling Stones através de Brian Jones, com quem iniciara uma ligação amorosa depois de se terem conhecido em Munique no ano de 1965. Durante uma viagem a Marrocos nas férias do grupo, em 1967, e depois de se declarar farta de levar sovas do Brian, trocou este por Keith. Na época, corriam rumores de que ela era uma feiticeira, praticante de magia negra...
Brian Jones esteve “ausente” durante as sessões de gravação que se realizaram no Olympic Studios de Londres. A 3 de Julho, seria encontrado morto na piscina da sua casa em Hartfield, Sussex.
«“Ele apenas estava lá num canto, encolhido, a ler um
artigo sobre botânica.”» – Al Kooper(2)
«Nós gravámos ‘Gimme Shelter’ numa sala grande do
Olympic Studios, em seguida fizemos os overdubs em
Los Angeles com Merry Clayton. Em Londres, Keith to-
cava a canção algumas vezes, sózinho – embora eu pense
que naquela altura o Brian ainda andava por lá; na verda-
de, ele até poderá ter estado no estúdio mas não há vocais
dele. O uso da voz feminina foi ideia do produtor. Terá
sido um daqueles momentos do género de “Eu ouvi uma
rapariga nesta faixa – ponham-me uma ao telefone.”» –
Mick Jagger(3)
Como segunda voz, aparece Merry (que na primeira tiragem do disco é chamada de Mary) Clayton, uma cantora de gospel, que gravaria a sua parte, no Elektra Studios, de Los Angeles, entre Outubro e Novembro.
«Por volta de finais de Outubro, Mick e Keith estavam
a acabar as faixas de Let It Bleed no Elektra Studios, em
Los Angeles. Uma noite, Merry Clayton foi tirada da ca-
ma à uma da manhã para fazer o back-up dos vocais em
‘Gimme Shelter’.» – Bill Wyman(4)
«O produtor Jimmy Miller costumava contar uma histó-
ria sobre o primeiro encontro dos Stones com a senhora
Clayton, que não era uma ingénua nas sessões vocais de
Los Angeles. Quando ela chegou ao Elektra Studios,
Clayton caminhou para Jagger, olhou-o de alto a baixo,
e disse: “Man, eu pensei que eras um homem, mas não
passas de um rapazinho magricela!” Desconforto adicio-
nal surgiu depois de Clayton ter terminado de cantar o
primeiro refrão da canção: Perfeito! Incrível! Mick e
Keith deliraram. Foi então que Miller chamou os amigos,
porque esta mulher com aquela voz linda queria discutir
os royalties antes de passar ao segundo verso.» – Steve
Appleford(5)
Jagger, para além de cantar, toca harmónica. Como convidado especial aparece (o já habitual em discos dos Rolling Stones) Nicky Hopkins a tocar piano, e o produtor do disco, Jimmy Miller, dá a sua contribuição instrumental nas percussões. Nas consolas estiveram vários engenheiros, nomeadamente, Glyns Johns e o seu irmão Andy, em Inglaterra, e Jimmy Johnson nos EUA. Quanto à capa, é do papa da pop art, Andy Warhol.
«“O Mick foi realmente o produtor. Ele sabia o que que-
ria, e fazia quase tudo.”» – Al Kooper(2)
«“Certamente o Jimmy Miller teve um papel activo mas
foi mais o de uma co-produção do que o contrário.”» –
Glyns Johns(2)
«É, realmente, uma música do tipo ‘fim-do-mundo’, é
apocalipse... todo o álbum é assim.» – Mick Jagger(6)
«“Gimmie Shelter” é uma canção sobre o medo; (...) A
banda tem por base a beleza negra da melhor melodia
que, desde sempre, Mick e Keith escreveram, adicio-
nando-lhe lentamente instrumentos e sons até que uma
completa presença explosiva do baixo e da bateria di-
rigem a primeiro crista da canção aos berros de Mick
e uma mulher, Mary Clayton. (...) Quando Mary Clay-
ton canta sozinha, tão alto e com tanta força que vocês
até pensam que os seus pulmões estão a arrebentar, Ri-
chard enquadra-a sacudindo-a com riffs que a chamam
e levam-na de volta a Mick.» – Greil Marcus(7)
«“Gimme Shelter” alia uma certa amplitude sonora
a um dinamismo colectivo. A presença da cantora de
coro Merry Clayton tem muito a ver com esta segun-
da característica, e o refrão que ela canta violenta-
mente com Jagger e Richards constitui um “momen-
to” – repetido com intensidade crescente – cujos e-
xemplos em disco não são muito numerosos.» – Phi-
lippe Bas-Rabérian(8)
«‘Gimme Shelter’, a abertura apocalíptica de LET IT
BLEED, capturou o zeitgeist perfeitamente: o turbi-
lhão negativo de acontecimentos como o sangrento
conflito no Biafra, a erupção sombria dos problemas
no Ulster, os assassinatos de Manson, a tempestuo-
sidade do 144 Piccadilly em Londres, e a escalada
dos protestos na América e na Europa contra a
Guerra do Vietname. Um dos últimos ingredientes
adicionados a ‘Gimme Shelter’ foi o choro de pran-
to de Merry Clayton. Se alguma vez um registro se
emocionou com presciência, foi este - um dos maio-
res momentos do rock.» – Ian MacDonald(9)
«O disco começa com a aterrorizante “Gimme Shel-
ter”, a canção que veio a simbolizar não apenas a ca-
tástrofe do concerto gratuito dos Stones em Altamont,
mas a morte do espírito utópico dos anos 1960.»(10)
Os Rolling Stones:
Mick Jagger – Vocalista e harmónica;
Keith Richards – Guitarra;
Charlie Watts – Bateria;
Bill Wyman – Baixo;
Brian Jones – Presença;
Mick Taylor – Quase dentro do grupo…
Gimme Shelter
(Jagger/Richards)
Oooh
A storm is threat'ning
My very life today
Oh yeah
I'm gonna fade away
War, children
It's just a shot away
It's just a shot away
War, children
It's just a shot away
It's just a shot away… yeah
Ooh
See the fire is sweepin'
Our very street today
War, children… yes
It's just a shot away
It's just a shot away
War, children
It's just a shot away
It's just a shot away… yeaah
Rape, murder
It's just a shot away
It's just a shot away
It's just a shot away
It's just a shot away
Rape, murder
It's just a shot away
It's just a shot away… yayay
The floods is threat'ning
My very life today
Gimme, gimme shelter
Or I'm gonna fade away
War, children
It's just a shot away
It's just a shot away
It's just a shot away
It's just a shot away
It's just a shot away
It's just a shot away
I tell you love, sister,
It's just a kiss away
It's just a kiss away
It's just a kiss away
It's just a kiss away
It's just a kiss away
Kiss away, kiss away... ayee
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(1) Bernadine Dohrn, líder dos Weatherman Underground, sobre os assassínios cometidos pela Manson’s Family, 1968;
(2) PUTERBAUGH, Parke. “The Making of Let It Bleed”. Rolling Stones Nr. 937, December 11, 2003. p.113;
(3) DODD, Philip. “According To The Rolling Stones”. 2009. p.117;
(4) WYMAN, Bill. “Rolling With The Stones”. 2003. p.356;
(5) APPLEFORD, Steve. “Rolling Stones. Rip This Joint: The Stories Behind Every Song”. 2001. p.87;
(6) WENNER, Jann S. “Jagger Remember. The Rolling Stone Interview”. Rolling Stone Nr. 723, December 14, 1995. p.61;
(7) MARCUS, Greil. “You Get What You Need”. Rolling Stone Nr. 49, December 27, 1969. p.52
(8) BAS-RABÉRIAN, Philippe. “Les Rolling Stones”. 1981. Tradução de José Paulo Viana. p.123;
(9) MACDONALD, Ian. “The Prople’s Music”. 2003. p.68;
(10) “Let It Bleed. The Rolling Stones”. Rolling Stone Nr. 937, December 11, 2003. p.106;